Há meio século, um filme levou nossas almas
13/11/13 07:05Imagine que você está em 1963. Você decide ir ao cinema e escolhe um filme brasileiro com um nome chamativo.
Nosso cinema, na época, vivia de comédias e dramas históricos. Ainda não existia o Cinema Novo ou o Cinema Marginal da Boca do Lixo.
Você paga ingresso, entra na sala lotada, e escolhe um lugar.
A primeira imagem é a de uma bruxa, amaldiçoando os espectadores:
“Se você tem medo de ruas escuras… de andar por cemitérios… então vá embora! Não assista a esse filme!”
Logo depois, surge Josefel Zanatas, um coveiro popularmente conhecido por Zé do Caixão. Sujeito estranho, de capa preta, cartola, e unhas longas.
Pelos 85 minutos seguintes, Zé barbariza: mata o melhor amigo e depois estupra sua mulher; corta os dedos de um coitado com uma garrafa; castiga outro com uma coroa de espinhos retirada de uma imagem de Jesus.
Pìor: Zé blasfema, zomba da religião, come carne na Sexta-Feira Santa enquanto a procissão passa na janela de sua casa. Desafia Deus a enfrentá-lo.
Não dá nem para imaginar o tipo de reação que “À Meia-Noite Levarei Tua Alma” teve em 1963.
Quem presenciou as exibições diz que muita gente queria matar o diretor, José Mojica Marins.
Por outro lado, muita gente gostou. O filme ficou mais de um ano em cartaz em São Paulo.
Se você ainda não viu “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”, recomendo. Existe em DVD por aí e passa de vez em quando no Canal Brasil. É o maior exemplo de que é possível fazer um filme popular, baratíssimo e artisticamente relevante.
“À Meia-Noite” é um conto de fadas brejeiro com visual expressionista e um anti-herói nietzschiano como o cinema nunca viu.
É cinema caseiro, feito de improviso e em condições precárias, filmado em 13 dias num estúdio minúsculo em Santa Cecília, São Paulo,com um elenco quase todo de amadores.
Mas quem assiste ao filme sem preconceitos consegue enxergar o talento por trás das dificuldades de produção.
A fotografia e a montagem são primorosas. O roteiro é dinâmico e não deixa a ação diminuir por um minuto. Os cenários, embora paupérrimos, com suas lápides de papelão, dão ao filme um clima gótico-trash-suburbano de arrepiar.
E os efeitos especiais assustam pelo inusitado: para fazer um relâmpago que atinge uma árvore, Mojica desenhou diretamente no negativo; os fantasmas são pessoas filmadas em positivo.
Mojica não usava som direto e dirigia os atores durante as cenas. Isso era necessário para controlar um elenco formado por amadores e alunos de sua escolinha de cinema.
Há uma cena, em especial, que merece ser vista e revista: o primoroso plano-sequência em que Zé do Caixão desafia os mortos a voltar do Além e levar sua alma. É um dos grandes momentos do cinema brasileiro.
Hoje, José Mojica Marins sofre uma maldição: é muito mais conhecido que seus filmes. Todo mundo sabe quem é Zé do Caixão, mas poucos assistiram aos filmes. Está na hora de mudar isso.
Se é um tipo de arte ou um modo de fazer cinema, respeito as preferências e referências. Mas não são as minhas, por certo. Há cenas mais agradáveis e gratificantes para assistir nos meios televisivos e cinematográficos.
Chegam as sessões de tortura dos documentários diários policiais e de crimes das Tvs, brasileiras.Bastam por si.
Então é melhor jogar no lixo o Expressionismo alemão e o Neo-realismo italiano, né? O primeiro só tem filmes com monstros, vampiros e violência; o segundo mostra os horrores da guerra e da pobreza. Tem coisa “mais agradável” por aí.
Não sou tão radical assim. Acho totalmente louvável a insistência do Zé do Caixão num gênero que praticamente o transformou em ícone no Brasil.
lembro ele no “Matéria Prima” (avô do Altas Horas) dizendo que exterior ele foi questionado sobre os processos de filmagem. As pessoas ficavam perplexas ao saberem que ele utilizava aranhas de verdade em seus filmes.
Porém isso não é para mim. Tentei assistir + de uma vez e nãos desce…
Desculpe a minha Ignorância André, é “À Meia-Noite Levarei SUA Alma” ou “À Meia-Noite Levarei TUA Alma”?
TUA.
Curto o Mojica desde criança. Assistia ao programa dele na TV Record e morria de medo (me lembro de matérias bizarras sobre casamentos realizados em terreiros e outras maluquices). Depois, tenho a recordação dele cortando as unhas no programa do Gugu, com Zé Ramalho cantando “Admirável Gado Novo”. Mas a primeira vez que vi um filme do homem foi em 1992, numa sessão maldita -sexta-feira 13, à meia-noite- no há mui extinto Cine Elétrico, da Rua Augusta. Não havia mais de 10 pessoas presentes na exibição, entre as quais seu colega André Forastieri e o Renato Yada. Depois, quando seu livro saiu, comprei imediatamente uma cópia e também a ótima caixa da Cinemagia. E confesso que curti bastante ver “A Encarnação do Demônio” na telona, ainda que, pra variar, com o cinema às moscas. Em tempo: está mesmo em produção a cinebiografia do Mojica com o Matheus Nachtergaele?
André, vc e o Ivan Finotti são dos poucos que tentaram tirar esse estigma do Zé.
O cara é idolatrado na gringa, se tivesse nascido na Europa seria milionário hoje.
A panela dos kikitos sequer o convida para os festivais.
Nunca o chamam para falar de cinema. Tratam-o como um cara bizarro, zombam do seu português errado, julgam-o por seu histórico de alcoolismo.
Qual é a saída? Ou ele só será reconhecido “pos mortem’?
No post mortem ele vai é voltar! E à meia-noite, como é conveniente.
Diz a lenda que Glauber Rocha saiu de uma sessão do filme falando em alto e bom som para quem estivesse passando na rua que o Mojica era um gênio.
Há alguns anos fui pagar essa conta, e acabou que vi todos que ele fez até aquele do hospício, que esqueci o nome. Mas me favorito, e um dos meus filmes da vida mesmo é o Despertar da Besta. Pra mim, no Brasil não tem nada melhor que o Mojica…
É meu filme brasileiro predileto, junto com “O Bandido da Luz Vermelha”.
Lembro que a primeira vez que assisti “A meia noite levarei tua alma” gostei tanto que repeti no dia seguinte. E segue sendo até hoje um dos filmes nacionais que eu mais gosto.
Realmente é uma pena que os filmes do Mojica sejam tão pouco assistidos.
A sequencia colorida no inferno do filme “Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver” é uma das coisas mais fodas do cinema brasileiro. Coisa de gênio.
Eu estou nessa. Ainda não assisti a um filme do Zé do Caixão, mas não vou me esquecer de sua performance no caixão suspenso antes do show do Misfits na Virada Cultural. Ainda chego lá.
Mojica ao lado de Sganzerla é símbolo de São Paulo, tinha que ter estação de metrô ou rua em seu nome…
Copiando um trecho do seu texto: “Nosso cinema, na época, vivia de comédias e dramas históricos.”
Regredimos?
Uma vez li na Set, extinta revista de cinema, um artigo ( infelizmente perdi a revista e não me lembro o nome de quem escreveu o artigo) que mostrou como o Mojica criou um personagem que entrou no inconsciente coletivo do brasileiro. Depois dos filmes com o Zé do Caixão ( só o nome já mostra o gênio de Mojica ), começaram os pais de santos dos terreiros deste pais afora a receberem a entidade Zé do Caixão. Nenhum outro cineasta brasileiro conseguiu fazer isso. E outra coisa importante : Mojica bancava por sua conta e risco os seus projetos, não era da patota da Embrafilme.
Barcinski, tenta entrar em contato com o Tim Burton pra ver o convence a fazer um filme sobre o Mojica com a qualidade de Ed Wood! (rs)
(Aliás, essa história dele, da trilogia do terror, está nos extras do filme “o estranho mundo de zé do caixão”, que também tem três histórias.Na abertura do filme, toca uma música assombrosa, uma espécie de samba-gospel-fúnebre, cantada em português…você sabe a origem dessa música, de quem é, etc? Valeu André ) .
Claro. Tem no nosso livro sobre o Mojica. Mas estou de mudança e com todos meus livros encaixotados até dezembro. Se vc me cobrar depois, digo o nome do cantor.
Valeu! 🙂
Barcinski, está disponível no canal Philos “A História do Cinema: Uma Odisseia” de 2011, dirigido por Mark Cousins. O documentário está dividido em 12 episódios, e aborda de forma muito singular o tema, já que ousa abordar a essência da arte, a qual, muitas vezes, encontra-se escondida em obras pouquíssimo difundidas, mas que causaram grande impacto em diretores consagrados. No entanto, por mais desconhecidos que sejam em âmbito internacional, esses diretores, e suas obras, ganham significativa notoriedade no próprio país, cenário este aparentemente inocorrente no Brasil.
Excelente dica, obrigado.
Mês retrasado teve um evento aqui no Rio em homenagem a ele, em que passaram esse clássico, e em seguida teve um debate com ele.É uma pena que ele seja um sujeito tão “à margem”, tendo o seu trabalho mais valorizado no exterior do que aqui (onde é mais lembrado pelo folclore do seu personagem do que pelos filmes, muitas vezes). Um filme dele que eu particularmente considero uma obra prima é o episódio dele inserido na “Trilogia do terror” (filme em parceria com o Person e o Candeias). Acho que é a história mais aterrorizante que já vi.Aquela cena perto do fim , em que a multidão corre pra tentar resgatar o sujeito que havia sido enterrado vivo, ou as expressões faciais dos estupradores que encontram o casal no meio do mato…enfim, tenebroso, e MUITO bem feito.
Há muitos anos o Mojica é sucesso na Califória, desde que participou do Festival de Cine Trash que rola por lá.
O Zé podia aproveitar esse monde de verbas via leis de incentivos culturais e produzir mais filmes. Há algum tempo, li sobre o roteiro sobre a lenda do corpo seco, mas parece que não deu em nada. Bora, Zé, fazer cinema!
Ele tenta, Igor, mas não consegue verba.
Ele não consegue a aprovação da verba pro incentivo no MINC ou, depois de aprovado, ele não consegue captar com as empresas?
Não consegue grana das empresas.
Pra se ver como tem gente burra nos departamentos de marketing.
Essa “maldição” que o Mojica sofre é muito comum hoje em dia, pois reina a “cultura de botequim”:
Zé do Caixão: trash; Freud: ego; Nietzsche: niilismo; e por aí vai…
Todo mundo “conhece” a obra dos caras, mesmo sem nunca ter lido/visto algo sobre eles.
E o que dizer de Karl Marx que todo mundo critica/elogia mas ninguém leu?
Mojica é um caso interessante em que o personagem ficou mais conhecido do que o trabalho do seu criador. Ele faz parte do folclore como a mula sem cabeça e o saci! : )
pra variar, o trabalho do cara é reconhecido lá fora e virou o coffin joe, onde se encontra toda filmografia dele e não é motivo de piada como disse o Murilo.
André, é absurdo comparar a obra de Zé do Caixão com Ed Wood em importância?
É sim. Mojica fez filmes excelentes. Ed Wood era uma besta incompetente que fez filmes divertidos de tão ruins.
É um absurdo, sim, Henri. O Mojica é muito, mas MUITO melhor cineasta que o Ed Wood. Talvez compará-lo com o Jodorowsky fosse mais apropriado (consigo ver algumas semelhanças nos delírios surrealistas dos dois).
Barcinski, como assim ainda não existia Cinema Novo? Deus e o Diabo, Rio 40 graus, Tocaia no Asfalto são o quê?
Quanto ao autor ser mais conhecido que a obra, Shakespeare tb sofre dessa maldição, definitivamente.
Abrs!
Deus e o Diabo é do ano seguinte, 1964. E foi com ele que se começou a falar, com mais ênfase, em “Cinema Novo”. Claro que os cineastas do CN se inspiraram no Nelson Pereira dos Santos, Roberto Pires, nessa turma, mas o movimento que ficou conhecido por Cinema Novo começou a surgir justamente nessa época, início/meio dos anos 60.
Barcinski, meu caro, quem leu o livro Nada Mais Que A Verdade e abri-lo na página 223 já vai constatar que és suspeito de falar da grande figura Mojica Marins. Suspeição de natureza íntima.
Lembro que meu pai falava muito do filme quando eu era moleque, ele sabia que eu assistia muitos filmes de terror, ele ficou fascinado com Uma Noite Alucinante 2 quando assistimos juntos bem tarde da noite, foi quando ele comentou sobre o filme do Zé do Caixão. Só pude ver na TV anos depois, eu já crescido, passou na TV Cultura. Eu fiquei surpreso, pela época que foi feito descobri que muitos imitaram o filme, lembro de um desenho animado americano (não lembro qual) tinha um personagem parecido com Zé do Caixão, tinha capa preta, cartola, unhas longas, voz demoníaca, e vários filmes gringos que vi antes tinham alguma coisa de “Coffin Joe”.
André, sempre ouço que na ” gringolândia “, ele é muito respeitado. É verdade isso mesmo???…ah, ele ainda mora na Santa Cecília??
É sim, muita gente conhece a obra dele lá fora.
Hora do reconhecimento..eu via sempre esta figura nas ruas do centro de Sao Paulo, quando morava no Brasil..
Para mim, o melhor filme dele ainda é Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. Me lembro de ver ainda pequeno, devia ter meus 12 anos, numa destas madrugadas da Band. Aquela cena das aranhas até hoje me assusta.
André, acho que o Mojica é uma espécie de Fridkien aqui para os produtores brasileiros. Ou têm medo de trabalhar com ele ou não entendem seu modo de trabalho e apenas o ignoram. Só isso para explicar que um cara cultuado lá fora não tenha o merecido reconhecimento ainda em vida. Até o Tom Zé conseguiu isso por aqui por causa das ajudinhas do David Byrne. Por que não acontece o mesmo com o Mojica e seus filmes, já que com o personagem Zé do Caixão até que a coisa rola???
Mês passado aqui em Goiânia aconteceu a Mostra Trash com projeção do “Encarnação do Demônio” grátis, em um cinema bem confortável e com a presença do Mojica.
Achei que ia lotar, cheguei cedo, peguei senha para entrar morrendo de medo de não conseguir lugar. Resultado: 30 gatos pingados na sessão e depois do filme, na parte de perguntas e respostas com ele e o Carlos Primati uns 15…
Quantos estavam pagando 50 pilas para ver GI Joes 7 4D SRS no mesmo horário?
André, pensa em atualizar a biografia do Mojica???
Seria uma boa, né? O problema é que estou envolvido com três livros, então iria demorar bastante.
Pode comentar quais são estes 3 livros ou são segredo de estado?
Posso: um é sobre a música pop brasileira, os outros dois são biografias de João Gordo e Marcelo Nova.
Gostei dos 3 assuntos : )
hehehe
O do João Gordo vai esclarecer a verdade sobre aquele famoso show do RxDxPx em que o Gordo se cagou em pleno palco?????
Imagino o trabalho, Andre.
Em 2007, iniciei um estudo para elaborar a biografia do saudoso Wilson Grey, mas desisti quando vi o trabalho que iria dar.
Ademais, sou advogado, e não tenho muito tempo de sobra, embora tenha – na época – iniciado tratativas para entrevistar o Chico Anísio.
Dá um trabalho absurdo!
Uma pena!
Conheci bem o Grey, figuraça. E dava uma ótima biografia.
Também não conhecia nada do Mojica, a não ser o personagem Zé do Caixão. Até que há uns três anos atrás encontrei sua biografia sobre ele na biblioteca. Devorei o livro em pouco tempo e logo fui em busca dos filmes. Virei fã.
Barça, essa semana vi uma entrevista do João Gordo no programa da Marília Gabriela. Sério que vocês está escrevendo a biografia dele? Já tem previsão de lançamento?
É verdade sim, deve sair no fim de 2014 ou início de 2015.
Biografia do João Gordo, sensacional! Aguardo ansiosamente. Sobre o Mojica, apesar de eu ter 41 anos, assisti um longa do Mojica pela primeira vez há dois anos, na madrugada de uma sexta feira 13 na biblioteca Viriato Correa. Infelizmente eu estava entre aqueles que conhece e até admira o personagem mas nunca tinha visto sua obra. E fiquei encantado. O cara é gênio. Mas o jeito simplório do gênio faz com que ele seja subestimado, por aqui. Outra coisa que ajudou a contribuir com isso, foi a péssima continuação da trilogia que mais parecia de fato um filme puramente trash, repleto de víceras para pessoas de poucos miolos. Destestei. Muito aquém da obra pregressa do mestre. Pena que a criatividade do gênio parece ter ficado no passado.
clap, clap, clap, clap, clap…
Sensacional. Mojica é um gênio!!!
Antes de ler o seu blog, ha uns anos atrás, eu não sabia nada do Mojica a não ser que ele era o Zé do Caixão e tinha as unhas compridas. É triste o que a grande mídia tenta fazer com ele (e eu acho que consegue), tratam ele como se fosse uma piada. Realmente está na hora de mudar isso, afinal quem mais perde nessa história somos nós mesmos, que deixamos de lado alguém tão genial e caímos na ladainha de alguns.
Mas o José Mojica ia aos programas como Zé do Caixão!! E jogava pragas e etc! Acho que é um caso singular de diretor-ator-pessoa numa coisa só. Uma espécie de “borat” 40 anos antes!