Sexta-feira passada, dia 28, o motorista que tentava entrar ou sair de São Paulo no fim da tarde ficou emparedado. Manifestações fechavam a rodovias Dutra, Fernão Dias e Anhanguera.
Os protestos começaram por volta de 18h e as estradas só foram liberadas entre 21h30 e 22h. Ou seja: três das principais vias de acesso e saída da metrópole ficaram paradas por quase quatro horas.
Perto de 21h, vi na TV uma cena ao vivo da Dutra. O engarrafamento era tão extenso que os motoristas haviam desligado os carros e estavam batendo papo fora dos carros. A repórter disse que a estrada havia sido fechada, nos dois sentidos, por cerca de 300 manifestantes. Alguns sites e jornais calculavam um número pouco maior: 500 pessoas.
Todos os sites, jornais e TVs classificaram as manifestações de “pacíficas”.
Seria bom começarmos a discutir melhor o significado de “pacífico”. Não é porque um protesto não tem pedradas que deixa de ser violento.
Acho uma tremenda violência deixar milhares de pessoas trancadas em carros por três, quatro ou até cinco horas, enquanto manifestantes exercem seu direito legítimo de protestar.
Quem lê o blog sabe que, desde o início das manifestações, tenho defendido os protestos e elogiado a recente tomada de consciência política de boa parte da população. Mas não posso concordar com um protesto realizado por um número pequeno de manifestantes – 300 a 500 – que fecha uma estrada bem na hora do rush, numa sexta-feira, causando prejuízos a um número muito maior de cidadãos.
É uma equação complicada: defender o direito de quem quer protestar e, ao mesmo tempo, o direito de quem só quer chegar em casa.
No sábado, um grupo de 30 pessoas – repito, 30 – bloqueou a Avenida Paulista por dez minutos em protesto contra o presidente da CBF, José Maria Marin. Acho justíssimo reclamar de Marin, mas um grupo tão pequeno fechar uma via tão importante quanto a Paulista, onde existem hospitais, é um absurdo.
Se qualquer grupo de 30 ou 300 pessoas achar que deve bloquear a Dutra, a Paulista, a Avenida Brasil ou qualquer outra via importante de nossas metrópoles, os protestos vão perder a relevância para se tornarem apenas estorvos. Os manifestantes perigam atirar no governo e acertar em outros cidadãos.
P.S.: Ontem fiz um texto para a edição online do “Esportes”, da “Folha”, sobre a ótima atuação do Brasil contra a Espanha. Leia aqui.
Assistíamos ao excelente documentário “Método para a Loucura de Jerry Lewis”, quando uma legenda nos chamou a atenção: o filme falava da parceria entre Jerry Lewis e Dean Martin, e a legenda dizia: “Não era fácil para Dean ser heterossexual.”
Como assim? Logo Dean Martin, um dos maiores machões da história do showbiz?
A frase original em inglês era “It’s not easy to be the straight man”. “Straight” pode significar “heterossexual”, mas, no caso, quer dizer o comediante que faz o papel mais “sério” e serve de “escada” para outro. E poucos “straight men” do cinema foram tão bons quanto Dean Martin.
Pouco antes, uma frase dita pelo ator Woody Harrelson fora traduzida por “Não quero falar sobre Jerry Lewis”, ou algo do gênero. Não é estranho alguém dar uma entrevista num filme que homenageia um gênio da comédia e dizer que não quer falar sobre o sujeito?
O que Harrelson disse foi que gostava tanto de Jerry Lewis que nem perdia tempo batendo papo com alguém que dizia não gostar.
Dias antes, assistindo a outro filme – não lembro exatamente qual, mas desconfio ter sido um documentário sobre Woody Allen – me deparei com a seguinte legenda: “Ele fez a fama se apresentando no cinto do chefe”.
O tal “cinto” era nada menos que o “Borscht Belt” – o tradutor confundiu “borscht”, uma tradicional sopa de beterraba muito comum na Rússia, com “boss” (“chefe”). “Borscht Belt” –“Cinturão do Borscht” – é uma expressão usada para identificar uma região de Nova York onde se concentravam clubes de veraneio muito freqüentados por famílias judias e onde muitos comediantes começaram as carreiras.
Fico imaginando o que passa na cabeça de alguém que lê uma legenda dessas. Será que ele pensa que Woody Allen contava piadas enquanto segurava o cinto do empresário, ou que Dean Martin era forçado, por Jerry Lewis, a ter relações homossexuais? Com certeza, os filmes ficariam mais interessantes do que já são.
Tenho medo de bandas velhas que se reúnem para fazer discos novos. Normalmente, é sinal de abacaxi.
Estava especialmente receoso com esse disco novo do Black Sabbath, até porque é uma de minhas bandas favoritas.
Escuto Sabbath religiosamente há mais de 30 anos. Lembro perfeitamente do dia em que fiz 13 anos, ganhei de presente um vale da Toc Discos e voltei para casa com meu exemplar de “Volume 4”, que tenho até hoje.
Mas que surpresa: “13”, o primeiro disco do Sabbath com Ozzy em 35 anos, é muito, mas muito bom.
A bolacha foi produzida por Rick Rubin. E Rubin, que não é bobo, sabe que mexer no som do Sabbath seria um sacrilégio.
Quando o assunto é Black Sabbath, sou ortodoxo: Sabbath pra mim é Ozzy, Iommi, Geezer Butler e Bill Ward. Era divertido ouvir Ronnie James Dio, mas nunca foi a mesma coisa, sempre pareceu banda cover, apesar de ter feitos bons discos.
Na época, até gostei dos primeiros discos solo do Ozzy, mas a verdade é que eles envelheceram mal demais. Aquele metal oitentista americano, com o Ozzy de penteado à Maria Braga e guitarristas de quatro braços e 20 dedos em cada mão, não me desce.
Randy Rhoads, Zakk Wylde, Jake E. Lee, Brad Gillis… Todos ótimos guitarristas, que certamente deixam o velho Tony Iommi no chinelo em termos de velocidade e técnica. Mas prefiro mil vezes ver um bom jogo de futebol a um torneio de embaixadinha. No meu time, Randy Rhoads não amarra nem a chuteira de Tony Iommi.
Preciso ouvir “13” mais vezes, mas fiquei muito impressionado com o ritmo lento e mastodôntico das músicas. Rick Rubin sabe que velocidade é coisa de jovem, e diz que incentivou a banda a esticar as músicas ao máximo, algumas até seis, sete, oito minutos. Aprovei: Sabbath, pra mim, sempre foi mais stoner que qualquer coisa, som de bêbados chapados andando sem pressa de chegar.
Fiquei até com vontade de ir ao show no Brasil. Já vi o Sabbath com formação original – “13” não tem Bill Ward, substituído pelo baterista do Rage Against the Machine – e foi uma coisa linda. Foi na turnê “Reunion”, em fevereiro de 1999, no Spectrum, na Filadélfia. Lembro três coisas: de ficar impressionado com a total ausência de uma pessoa negra entre as 18 mil presentes, da quantidade de lojas de armas em volta do lugar, e de chorar sozinho em “Into the Void”. Vida longa aos príncipes da escuridão…
Escrevi ontem sobre a autobiografia de Nile Rodgers, “Le Freak”. O livro é tão bom que decidi estender o assunto e falar de um dos trechos mais interessantes, o encontro de Rodgers e David Bowie, que resultou no disco “Let’s Dance”. Foi o LP mais vendido da carreira de Bowie e acaba de completar 30 anos.
O disco foi um choque para os fãs mais ortodoxos de Bowie, acostumados ao pop cerebral do camaleão. Bowie nunca fizera um disco de “entretenimento”, feito apenas para dançar, e por isso “Let’s Dance”, pelo menos a princípio, foi mal recebido. Demorou um pouco para o público perceber como Bowie, novamente, estava pensando à frente de todo mundo.
Para entender a gênese de “Let’s Dance”, é preciso certa perspectiva histórica: no fim de 1982, a indústria musical passava por um furacão chamado “Thriller”. O disco de Michael Jackson – o mais vendido da história – inaugurou a era dos megapopstars – Madonna, Elton, Whitney – que dominaria o pop nos anos seguintes, conhecida por “Era Michael Jackson”.
A indústria do disco passava por uma grave crise. A discoteca havia vendido muito até 1978, mas o gênero sumiu de repente e causou, junto com a segunda crise do petróleo, uma hecatombe nas vendas de discos. Gravadoras passaram a concentrar esforços apenas nos artistas de maior potencial de venda e despediram artistas aos milhares. Em 1979, o número de discos vendidos no mundo caiu pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra.
No início dos anos 80, a palavra “dance” era quase um palavrão. A discoteca era ridicularizada, e artistas como Donna Summer e Gloria Gaynor, que tinham reinado pouco antes, estavam por baixo. A nova moda eram videoclipes superproduzidos e artistas pop de forte apelo visual – a MTV havia estreado em 1981, é bom lembrar.
Bowie havia acabado de assinar um contrato nababesco com a EMI – parte da “Era Michael Jacskon” – e não podia arriscar um fracasso comercial. Ele já havia combinado fazer seu disco seguinte com o amigo e colaborador Tony Visconti, que havia produzido seus cinco discos anteriores. Mas um encontro casual mudou seus planos…
Numa noite no fim de 82, Bowie foi a uma casa noturna em Nova York. Era um local freqüentado por góticos e por uma tribo curiosamente inspirada no próprio Bowie, os new romantics – movimento que geraria bandas como Duran Duran, Visage e Adam Ant.
Nessa boate, Bowie encontrou dois sujeitos pra lá de Bagdá: Nile Rodgers e Billy Idol. Rodgers e Idol eram amigos, cheiravam mais que dois tamanduás e ficaram petrificados quando viram Bowie no clube. Nile ainda tentou manter a calma, mas Billy Idol, que nunca foi conhecido pela discrição e bons modos, gritou: “Wow! Motherfucking David Bowie!!!”
Bowie e Nile Rodgers bateram papo por horas. Falaram de música e cinema. Nile foi para casa e esqueceu o papo. Semanas depois, recebeu um recado: Bowie queria que ele produzisse “Let’s Dance”. O homem por trás do Chic era justamente o sujeito que Bowie procurava para fazer um disco de dance music moderno e sem saudosismo, que apontasse novas direções para a música pop.
E foi exatamente o que aconteceu: com “Let’s Dance”, Bowie deu o salto comercial que tanto queria e fez um disco artisticamente relevante, que influenciaria toda a nova cena eletrônica/pop que surgia, como Duran Duran, Depeche Mode, A-Ha, Culture Club, etc.
O sucesso do disco foi uma surpresa até para Bowie. Ele queria, desde o início, fazer um disco dançante, mas orgânico, que não soasse excessivamente robótico ou “frio”. Por isso convidou o guitarrista de blues Stevie Ray Vaughan para tocar e pediu ajuda a Nile Rodgers, um músico que sabia, como ninguém, criar grooves marcantes.
Anos depois, numa cerimônia de entrega de prêmios, Bowie agradeceria publicamente a Nile Rodgers: “Tiro meu chapéu para Nile, o único homem capaz de me fazer começar uma música com um coro!”
P.S.: Demorou, mas veio: conforme prometido,aqui vai o link da matéria sobre viagem à Chapada Diamantina com crianças. Bom proveito…
Quando leio um livro e acho que vale a pena indicá-lo aqui no blog, costumo marcar as páginas que trazem histórias relevantes e que merecem ser citadas. Normalmente, termino um livro com 15 a 20 páginas marcadas. Quando terminei “Le Freak”, autobiografia de Nile Rodgers, havia marcado quase 50.
“Le Freak” – ainda não lançado no Brasil – já entrou para minha lista pessoal dos livros mais incríveis sobre música.
Nile Rodgers foi o criador do grupo de discoteca Chic, famoso por sucessos como “Le Freak”, “Good Times” e “Dance, Dance, Dance”. Foi também produtor de alguns dos álbuns mais marcantes dos anos 80, como “Let’s Dance” (1983), de David Bowie, “Like a Virgin” (1984) de Madonna e “Notorious” (1986), do Duran Duran. Trabalhou com Diana Ross, Michael Jackson, Mick Jagger e centenas – centenas mesmo – de outros artistas.
Mas vamos deixar de lado por um momento a carreira musical de Nile Rodgers. Só a vida dele daria um livro espetacular. Não é à toa que um terço de “Le Freak” conta a infância e adolescência do sujeito.
A mãe de Nile, Beverly, tinha 13 anos quando ele nasceu. Beverly era negra, mas tinha raízes européias e indígenas. O pai de Nile era um percussionista de jazz de família africana. O casal logo se separou. Beverly teve filhos com vários outros homens – Nile é o único filho negro – enquanto o pai de Nile, que sofria de alcoolismo, acabou morando na rua, mendigando. E isso é só a primeira página.
Beverly se casa com um beatnik judeu, Bobby Glanzrock, vira junkie em tempo integral e manda o pequeno Nile morar com vários parentes, incluindo uma avó durona e uma tia com problemas mentais por ter sido violentada na infância.
São tantas as histórias incríveis sobre a infância de Nile Rodgers que é difícil destacar alguma. A que mais me deixou pasmo foi a de um criminoso chamado “Bang Bang” que se apaixona por Beverly, leva um fora dela e ameaça matar os filhos – incluindo Nile – se ela não voltar para ele. Beverly se esconde com as crianças e chama a polícia, que inicia uma caçada em todo o país por Bang Bang, então procurado por vários crimes. Esse era um dia normal na vida da família Rodgers.
Adolescente, Nile começa a se interessar por jazz, vira hippie depois de tomar LSD com uma comuna de freaks chefiada por Timothy Leary – 20 anos depois, numa festa, Nile ouve Leary contar a história do dia em que converteu dois jovens negros ao LSD e percebe que o personagem da história era ele próprio – trabalha limpando aviões num aeroporto de Los Angeles, onde acaba fazendo faxina no avião de Frank Sinatra, estuda música clássica, começa a tocar guitarra e consegue uma vaga na banda do lendário teatro Apollo, no Harlem.
No meio dos anos 70, Nile e seu parceiro musical, Bernard Edwards, montam o Chic. A inspiração veio do Roxy Music e – pasmem – do Kiss.
O Roxy Music é compreensível: com sua sofisticação sonora e aquelas capas chiques com supermodelos em poses de revista, o Roxy Music inspirou toda a discoteca. Já o Kiss interessou a Nile pelo anonimato da banda. Nile achou interessante o fato de os integrantes não se mostrarem e decidiu que o Chic também seria assim, mais um projeto que uma banda.
Entre 1975 e 1986, Nile Rodgers foi um dos grandes nomes do pop. Explodiu com o Chic e os discos que produziu – Sister Sledge, Bowie, Madonna, Dura Duran – lideraram as paradas. Com o sucesso e a fortuna, vieram imensos problemas com drogas, especialmente cocaína.
Nile cheirava tanto que seu contador um dia o aconselhou a presentear os amigos com pingentes de ouro: “Nile, ouro é mais barato que cocaína; em vez de comprar pó pra eles, dê ouro. Eles vão gostar e você vai poupar uma fortuna.” Uma vez, em plena paranóia cocainômana, Nile, que havia transado com a namorada de um traficante e achava que o marginal iria matá-lo, passou dias trancado no armário de um hotel de luxo, empunhando uma pistola 45 e uma espada de ninja.
Quem gosta de ler sobre os bastidores da música vai se fartar. Nile conta encontros com Michael Jackson, Diana Ross, Eddie Murphy (Nile fez a trilha de “Um Príncipe em Nova York”), Blondie e Bowie, entre outros. Numa festa na mansão de Madonna, na Flórida, Niles termina a noite no banheiro, cheirando e chorando – “Cara, você é demais! Eu tem amo, cara!” – com Mickey Rourke.
Os casos com Madonna são hilários. Certa vez, a “Material Girl”, triste porque Nile não havia dado em cima dela, pergunta se ele não a achava sexy. “Madonna, você é a coisa mais sexy que já vi na vida”, responde Nile. “Então por que você nunca quis me comer?” Nile, atordoado pela pergunta, explica que é o produtor do disco e não achava isso seja legal. “Isso não impediu nenhum dos meus produtores de tentarem me comer”, diz Madonna.
Nos próximos dias, contarei aqui no blog detalhes do encontro de Nile Rodgers e David Bowie, que resultou num disco clássico, “Let’s Dance”.
E aqui vai a íntegra de um documentário da BBC sobre Nile Rodgers, chamado, apropriadamente, “The Hitmaker”. Aproveite…
Meu colega da “Folha”, Mário Magalhães – autor da excelente biografia “Marighella”, que recomendo demais – escreveu um texto muito interessante em seu blog na última sexta-feira (leia aqui), com o título “Quem não gosta de partido é ditadura. Hora de escolher: ou dar as mãos aos skinheads neonazistas ou abraçar a tolerância e a democracia”.
Mário criticou a reação de alguns manifestantes que, nos protestos de quinta-feira, reagiram com violência à presença de integrantes de partidos políticos e sindicatos: “No país inteiro, militantes portando bandeiras, estandartes e símbolos de partidos políticos, centrais sindicais, entidades estudantis e movimentos sociais foram escorraçados por uma turba intolerante. Em São Paulo, os principais executores dessa modalidade de repressão política foram os skinheads, os ‘carecas’ neonazistas. Botaram para correr quem vestia camisa vermelha, rasgaram bandeiras de agremiações e arrancaram faixa do movimento negro. São racistas e homofóbicos. No Rio, essa turma agride, fere e mata gays.”
Nesse ponto, concordo inteiramente com o Mário: todo mundo tem o direito de se manifestar, inclusive os partidos, sindicatos, uniões estudantis, etc. Os protestos não são “território” de ninguém.
Mais preocupante que o fato de skinheads terem reagido assim – esse é, infelizmente, o modus operandi desses boçais, que precisam ser combatidos – foi o fato de pessoas que não são skinheads ou ligadas a grupos extremistas terem agido da mesma forma. Houve uma clara rejeição à presença de partidos e sindicatos nas manifestações, que não partiu só de skinheads.
O pior é que muita gente aplaudiu e apoiou essas reações violentas. Parece existir uma preocupação grande – quase uma obsessão – em não partidarizar os protestos.
Acho que está havendo uma confusão grande em relação a esse tema.
As pessoas parecem estar confundido “apartidarismo” e “antipartidarismo”. São duas coisas bem diferentes.
Pessoalmente, acho ótimo que os protestos sejam apartidários, mas não posso concordar que sejam antipartidários. Defender manifestações gregárias e inclusivas não significa escorraçar quem pensa diferente de você.
O ideal seria que os protestos mantivessem um caráter apartidário e inclusivo, mas que deixassem os participantes se manifestarem da forma que bem entendessem.
Como bem disse Mário, manifestações populares importantes da história do Brasil tiveram a presença de diversos partidos. Eu estava na Presidente Vargas – com meu pai – em abril de 1984, no famoso comício das Diretas, e vi Lula, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Brizola, Quércia, Tancredo e muitos outros dividindo o palanque. Bandeiras do PT, PDT e PMDB tremulavam lado a lado.
Acho perigoso comparar períodos históricos. Naquela época, partidos eram bem mais importantes e tinham mais representatividade que hoje. Quem diria que, 30 anos depois da campanha pelas Diretas, Lula estaria de braços dados com Maluf e Sarney, e os tucanos seriam aliados do Democratas, partido que nasceu do PFL e que, por sua vez, nasceu do PDS?
“Coisas da política”, claro. Mas são exatamente essas “coisas da política” que estão minando a credibilidade de partidos.
Voltando aos protestos recentes: não acredito que seja possível – ou desejável – manter as manifestações livres de partidarismo. Mudanças, se é que vão ocorrer, precisam passar por eles. Muito mais importante que rechaçar a presença de partidos é votar bem, para que eles voltem a ter representatividade.
O povo tem mais um motivo para protestar: inspirado pelas manifestações que se espalham pelo país, o cantor Latino anunciou hoje que está preparando “a música da futura reforma política brasileira”.
Será que a canção de Latino vai se tornar o hino desses protestos? Será ele o Sergio Ricardo, o Bob Dylan da geração Passe Livre? A conferir.
Enquanto a música de Latino não chega, vale a pena lembrar algumas canções de protesto que marcaram época. Em ordem cronológica:
Noel Rosa – Campanha da Boa Vontade (1931) – Insuperável cronista musical da vida brasileira, Noel, um gênio que morreu aos 26 anos, fez diversas músicas de cunho político, sempre com bom humor e ironia incomparáveis. Que tal “Comparo o meu Brasil a uma criança perdulária / Que anda sem vintém, mas tem a mãe que é milionária / E que jurou batendo o pé / Que iremos à Europa num aterro de café”?
Billie Holiday – Strange Fruit (1939) – Escrito por Abel Meeropol, um professor americano, o poema “Strange Fruit” (“Fruta Estranha”), depois musicado, falava de linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos. A letra fazia uma arrepiante analogia entre a imagem de um homem negro enforcado e uma “estranha fruta balançando em árvores”.
Bob Dylan – Masters of War (1963) – Ao estilo de seu ídolo, Woody Guthrie, Dylan compôs uma violenta condenação da Guerra Fria e de políticos que promoviam a guerra, antecipando um tema que seria abordado por muitos músicos no fim dos anos 60, com o agravamento da Guerra do Vietnã.
Creedence Clearwater Revival – “Fortunate Son” (1969) – Estupenda canção de John Fogerty sobre os filhos de políticos que não eram chamados para a guerra do Vietnã, enquanto o resto do país mandava os filhos para morrer na selva: “Não sou eu, não sou eu / Eu não sou filho de militar / Não sou eu, não sou eu / Eu não sou o felizardo.”
Geraldo Vandré – Pra Não Dizer que Não Falei de Flores (1968) – Nenhum DCE é de verdade se não tiver alguém tocando violão e cantando: “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.
Crosby, Stills, Nash e Young – “Ohio” (1970) – Assim que ouviu sobre a morte de quatro alunos da Universidade Kent State, de Ohio, por policiais, Neil Young escreveu esse lamento, que foi imediatamente gravado pelo CSNY. David Crosby diz que chorou durante toda a gravação.
Marvin Gaye “What’s Going On” (1971) – Só Marvin Gaye poderia cantar uma letra tão pesada sobre a Guerra do Vietnã de forma tão suave e sensual: “Mãe, mãe / Há muitas de vocês chorando / Irmão, irmão, irmão / Há muitos de vocês morrendo.”
Ultraje a Rigor – “Inútil” (1983) – Durante um bom tempo, foi uma espécie de hino não-oficial da juventude brasileira, uma canção cheia de ironia e que esculhambava nossa própria apatia.
Public Enemy – “Fight the Power” (1989) – O grupo de Chuck D misturou jazz, James Brown, gravações de velhos discursos de protestos, sirenes de polícia, e muita, mas muita raiva, e criou uma das canções mais incendiárias não só do rap, mas de toda a música, um hino contra a injustiça social, o racismo e a brutalidade policial.
Rage Against the Machine – “Killing in the Name” (1992) – Lançada seis meses depois dos violentos conflitos raciais de Los Angeles, a música do RATM ataca o governo, a polícia, a Klu Klux Klan, a indústria bélica e quem mais estivesse pela frente. Periga ser a canção de protesto mais popular e adorada dos últimos tempos.
Quem achava que a revogação do aumento das tarifas de ônibus esvaziaria os protestos se enganou.
Quinta-feira, houve manifestações em cerca de cem cidades brasileiras. Em São Paulo foram mais de 100 mil pessoas, o dobro do maior protesto até então. Em Manaus, 70 mil; em Vitória, 100 mil. No Rio, impressionantes 300 mil pessoas.
O dia registrou a primeira morte desde que começaram os protestos – um rapaz de 18 anos foi atropelado em Ribeirão Preto, supostamente por um carro que tentava furar o bloqueio dos manifestantes.
A julgar pelas cenas de violência no Rio de Janeiro e Brasília, é um milagre que não tenha morrido mais gente.
Em Brasília, manifestantes apedrejaram e tentaram invadir o Itamaraty. Foi a cena mais tensa da semana. Em determinado momento, tentaram até incendiar a entrada do prédio.
No Rio, houve confrontos com a polícia. Algumas pessoas atacaram o Terreirão do Samba, um espaço cultural conhecido da cidade. O que o coitado do samba fez para ser atacado dessa maneira, ninguém sabe.
Tudo que sabemos é que ninguém sabe de nada.
Nas ruas, os protestos abrangem todos os temas. Um amigo disse ter visto, no Rio, alguém – certamente torcedor do meu time, o Fluminense – carregando uma faixa: “Volta, Conca!”
Não é fácil viver no Brasil: corrupção, mau uso de dinheiro público, gastos exorbitantes com Copa do Mundo, educação e saúde deficientes. A lista de queixas é imensa.
Mas, se for algum consolo para os manifestantes, duvido que hoje algum deles queria estar na pele dos governantes.
Se você é prefeito ou governador e quer tentar estabelecer um diálogo, com quem fala? Como dialogar com um movimento sem face?
As manifestações que se espalharam como fogo pelo Brasil são inéditas porque não têm uma cara. Não há um líder, uma figura que sirva de referência, um “cabeça”.
Há vários movimentos independentes, mas, com a enorme variedade de temas dos protestos, ninguém “representa” – só para usar um termo muito em voga – sua totalidade.
O que vai acontecer nos próximos dias, ninguém sabe. Prognósticos são impossíveis, porque as manifestações não parecem seguir uma lógica. Tomei um susto quando soube que, no dia depois que o prefeito e governador do Rio atenderam às exigências e diminuíram as tarifas, 300 mil pessoas saíram às ruas. Juro que não esperava tanta gente.
Dilma convocou uma reunião de emergência para sexta de manhã. Estou curiosíssimo para ver o que vai sair.
Pelé, Ronaldo e Bebeto: que desagradável…
Dentro de campo, Pelé, Ronaldo e Bebeto foram craques extraordinários. Fora dele, são uns pernas de pau irrecuperáveis, verdadeiros Manguitos, Mericas e Carlinhos Itaberás.
Não sei se os três combinaram, mas o fato é que, nos últimos dias, em meio a protestos históricos que pararam o país, o trio calafrio deu declarações constrangedoras sobre nosso futebol.
Para começar, Bebeto: membro do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo, o ex-jogador disse à revista “Playboy” que João Havelange, que renunciou ao cargo de presidente de honra da FIFA poucos dias antes da divulgação de um relatório que comprovava que ele e Ricardo Teixeira haviam recebido propinas da empresa de marketing ISL (leia aqui), merecia “uma estátua”.
Ontem, Ronaldo Fenômeno, em seu Twitter, comentou o vídeo que circula na Internet em que ele diz: “Está se gastando dinheiro com segurança, saúde, mas sem estádio não se faz Copa. Não se faz Copa com hospital. Tenho certeza que o governo está dividindo investimentos”.
“Um pessoal postou um vídeo editado com declarações minhas sobre a Copa de dois anos atrás. Posso de fato não ter me expressado tão bem e a edição que eu vi na internet é bastante tendenciosa. Era outro contexto. Não é justo usar como se fosse dito essa semana”, escreveu Ronaldo.
Em primeiro lugar, o vídeo não foi editado, muito menos de forma “tendenciosa”. É um trecho de uma declaração de Ronaldo, mostrado sem cortes.
Claro que ninguém está insinuando que Ronaldo não acha importante a construção de hospitais, isso seria injusto. Mas que a declaração dele foi de uma falta de sensibilidade chocante, é fato.
Em vez de ficar reclamando, Ronaldo – que não vê conflito ético entre comentar jogos da seleção na TV Globo enquanto é membro do COL e ser dono de uma agência de marketing esportivo que gerencia a carreira de Neymar – poderia vir a público e pedir desculpas pela gafe. Vestir as sandálias da humildade seria um começo.
E Pelé? O Rei do Futebol, um “poeta, quando calado”, segundo Romário, fez das suas, ao divulgar um vídeo em que pede ao povo para “esquecer” as manifestações – que Pelé chama de “confusão” – e apóie a seleção brasileira: “Vamos esquecer toda essa confusão que está acontecendo no Brasil e vamos pensar que a seleção brasileira é o nosso país, é o nosso sangue.”
Não sei o que irrita mais na declaração, se o tom professoral e condescendente, ou a absoluta falta de perspectiva histórica de Pelé. De qualquer forma, é uma daquelas gafes que vai ficar para a história. Quem sabe, daqui a 30 ou 40 anos, quando os resultados dessas manifestações já tiverem mudado o país para sempre, alguém assista ao vídeo e lembre: “Nossa, como falava besteira o Pelé”.
Os governos de Rio e São Paulo fizeram a única coisa que podiam: cancelaram o aumento das tarifas. Era isso, ou conviver com cidades paralisadas.
Os discursos de Alckmin, Haddad e Paes – claramente combinados – tocaram no mesmo ponto: a ausência do reajuste vai prejudicar os investimentos nas cidades.
Os governos estão botando na conta dos protestos a diminuição de futuros investimentos públicos.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes, disse que a diferença dos 20 centavos na tarifa vai custar à cidade 200 milhões de reais: “São R$ 200 milhões que têm que ser arcados pelo poder público. Arcar com esses recursos significa, sim, a escolha de prioridades. Serão R$ 200 milhões a menos investidos em outras áreas.”
O prefeito só esqueceu de dizer que o Rio gastou 1,2 bilhão de reais com a reforma do Maracanã, que foi entregue de mão beijada para a iniciativa privada. Teria sido uma ótima comparação: um Maracanã equivale a seis anos de reajuste de tarifa.
É bom lembrar também que o custo original do Maracanã era de 600 milhões, mas o projeto dobrou de valor devido a “imprevistos”. E se o Rio pode gastar 600 milhões com imprevistos, certamente pode gastar um terço disso com o fim do reajuste nas tarifas.
Alckmin foi na mesma linha: “É um sacrifício grande, vamos ter que cortar investimentos, porque as empresas não têm como arcar com esses custos.” As empresas talvez não tenham, governador, porque pagam impostos altos demais.
Já Fernando Haddad, que na manhã de quarta disse que cancelar o reajuste seria um “ato populista”, de tarde mudou de ideia e fez justamente isso. O que teria acontecido com o prefeito?
O Movimento Passe Livre manteve a manifestação marcada para quinta-feira, em São Paulo, e disse que o evento será de “celebração”.
Resta agora ver se a onda de protestos que está varrendo o país vai arrefecer com o recuo dos governos ou se outros temas importantes entrarão na pauta.
De qualquer forma, foi um momento importante da história do país e um caso raro em que governantes se dobraram à vontade pública.
Espero que os protestos não desapareçam com essa vitória, mas que se tornem cada vez mais pacíficos e gregários, respeitando o fato de que as cidades não podem viver diariamente sob ameaça de parar.
Espero também que não vejamos mais saques em lojas e depredações de patrimônio público, como os da noite de terça-feira. Enquanto a maioria pacífica tem mostrado que quer mudar o sistema, uma minoria de vândalos só quer mudar o sistema de som de suas casas.
Jornalistas – especialmente da TV Globo – estão tendo dificuldades para trabalhar. Até Caco Barcellos, conhecido por suas reportagens sobre violência policial, foi hostilizado. Um caminhão da Rede Record foi incendiado. Dá para imaginar algo que prejudique mais os protestos que coibir o trabalho da imprensa?
Em Fortaleza, quarta-feira, manifestantes botaram fogo em um carro da prefeitura. Queimaram seu próprio patrimônio.
Acredito que a maioria da população apóie os protestos. Mas isso periga mudar se as manifestações se tornarem violentas.
Ao mesmo tempo, a polícia parece completamente perdida. Ou age com violência desproporcional, como ocorreu em São Paulo semana passada, ou se mostra impassível, a exemplo da depredação da Assembléia Legislativa do Rio, transmitida ao vivo pela TV.
Não é possível que a polícia não tenha o bom senso de coibir os excessos sem atacar quem está na rua pacificamente. Tenho certeza que a população concorda que atos de vandalismo só prejudicam os protestos e devem ser coibidos.
P.S.: Leia aqui meu texto na “Folha” sobre o grande ator James Gandolfini, de “A Família Soprano”, que morreu quarta-feira, na Itália.
Faz pelo menos duas semanas que não ouvimos mais nada além da caixa “Philadelphia International Records – The 40th Anniversary Box set”, uma coleção de dez CDs com o melhor da mitológica gravadora que revolucionou a black music.
A caixa saiu ano passado e é um dos melhores presentes que alguém pode receber. Não só a música é de primeira, mas a caixa é linda, produzida em papel brilhante e com um livreto muito bem escrito e informativo. Dá vontade de usar luvas só para não deixar suas impressões digitais gordurentas nessa maravilha.
A Philadelphia International Records (PIR) é uma das gravadoras mais importantes da história da música negra. Formada em 1971 pela dupla Gamble & Huff – Kenny Gamble e Leon Huff, dois músicos veteranos que já atuavam na cena musical desde o início dos anos 60, incluindo trabalhos com Aretha Franklin e Dusty Springfield – a PIR ajudou a estabelecer o gênero que viria a ser chamado de disco, com músicas dançantes de produção sofisticada, sopros, cordas, vocais com reverb, percussão latina e um clima de celebração coletiva.
Além disso, muitas músicas da PIR traziam letras de protesto. Sob o verniz sofisticado e a elegância das canções, Gamble & Huff falavam da situação dos negros nos Estados Unidos. Ouça “Let’s Clean Up the Ghetto”, do Philadelphia International All Stars, uma das letras mais raivosas já colocadas em cima de uma música tão dançante. A canção fala de uma greve de lixeiros em Nova York que deixou o “gueto” inundado em lixo e ratos.
A caixa traz mais de 200 músicas de artistas como M.F.S.B., Teddy Pendergrass, Billy Paul, The O’Jays, The Stylistics (que acabaram de tocar no Brasil!), Archie Bell and the Drells, The Jones Girls, The Trammps, Harold Melvins & The Blue Notes, Lou Rawls e dezenas de outros. É muita coisa boa junta.
No livreto que acompanha a caixa, o pesquisador Ralph Tee diz que a sofisticação do som da PIR pode ser creditada, em boa parte, ao arranjador e produtor Thom Bell, um fã de música clássica que enxergou a possibilidade de incorporar às gravações músicos italianos e judeus que atuavam em orquestras na região da Filadélfia.
Uma das músicas mais conhecidas da PIR foi “The Sound of Philadelphia”, tema do programa de TV “Soul Train”. Foi gravado pelo M.F.S.B. (na teoria, “Mother, Father, Sister, Brother”, mas que também podia significar “Mother Fucking Son of a Bitch”), um grupo de 25 ou 30 músicos de estúdio que gravaram boa parte das canções da gravadora. De chorar…