Mais que nunca, é preciso ver Samuel Fuller
26/03/13 07:05Não sei se é a idade, mas minha paciência com a competência estéril acabou faz tempo. Quando leio que alguma coisa é de “bom gosto”, fico imediatamente repelido por ela.
Quando o assunto é cinema, então, passo longe. Filme de publicitário, estética “clean”, comédia “inteligente”, imagem em HD ribombante, visual de série de TV… Tudo que apela ao “bom gosto” dá sono.
O cinema que me emociona continua sendo o imperfeito, o surpreendente, aquele que parece ter passado da lente para a tela sem o filtro do senso comum, sem o medo do novo ou do confronto.
Se eu estivesse em São Paulo, estacionaria na porta do CCBB e não sairia de lá enquanto não visse todos os 26 filmes da mostra de Samuel Fuller – os 24 filmes dirigidos por ele e mais os dois documentários sobre o cineasta. A mostra começa hoje em Brasília (vai até 14 de abril) e depois chega ao Rio de Janeiro (16 de abril a 5 de maio).
Samuel Fuller (1912-1997) foi um dos maiores subversivos do cinema. Fez filmes esteticamente inovadores e tematicamente corajosos. Não é à toa que foi perseguido e expulso de Hollywood.
Fuller foi repórter policial, cobriu assassinatos, fotografou brigas de gângsteres e chafurdou no submundo. Lutou na Segunda Guerra e ajudou a libertar campos de concentração dos nazistas. Essa experiência marcou sua vida e seu cinema. Quando virou cineasta, no fim dos anos 40, levou uma linguagem de tabloide sangrento para as telas.
Fuller fez faroestes, policiais “noir”, dramas e filmes de guerra, sempre com um estilo direto e pessoal. Odiava a assepsia do cinema comercial, que julgava “coisa de criança”. Influenciou a Nouvelle Vague (Godard o escalou para uma ponta em “Pierrot Le Fou”), Scorsese (os closes das lutas de boxe em “Touro Indomável” são puro Fuller) e Wim Wenders (Fuller fez um papel em “O Amigo Americano”). No Brasil, Rogério Sganzerla era fullermaníaco de carteirinha, e “O Bandido da Luz Vermelha”, com sua estética de “Notícias Populares”, é a maior prova disso.
Muitos chamaram Fuller de primitivista. E não deixa de ser verdade: seu cinema é primitivo, no sentido de ser rude e grosseiro, e de provocar no espectador reações instintivas.
Alguns cineastas têm essa capacidade de chocar pelo insólito, por seu estilo pessoal, inesperado e idiossincrático. Lembra a primeira vez que você viu os filmes da fase mexicana de Buñuel? Quando viu o menino de rua jogando o ovo na câmera em “Os Esquecidos”? Ou quando viu Jodorowsky? Paradjanov? Mojica? Ken Russell?
Samuel Fuller é desse time. Seus filmes podem ter defeitos, podem ser desiguais e repetitivos, mas nunca, nunca, em hipótese alguma, são supérfluos. Samuel Fuller não é um burocrata.
Nunca esqueço a primeira vez que vi “Cão Branco”. Foi em 1991, num VHS mofado. No filme, uma mocinha simpática, que lutava para ser atriz em Hollywood, encontra um pastor alemão albino. O cão está machucado e faminto. Ela leva o bicho para casa e lhe dá casa, comida e carinho. O animal retribui o afeto. Até que ela descobre que o cão é treinado para matar negros.
Atordoada, ela busca ajuda de um treinador de cães. Um negro. E os dois tentam descondicionar o animal, tirar dele o instinto racista assassino que lhe foi incutido desde o nascimento.
É o melhor filme sobre racismo que já vi, e não tem um pingo do moralismo ou do tom professoral da grande maioria dos filmes sobre o assunto.
“Cão Branco” acabou com a carreira de Fuller em Hollywood – que já não era grande coisa. Depois desse filme, ele nunca mais conseguiu grana para filmar nos States, e foi morar na Europa.
Outra paulada é “Paixões que Alucinam” (“Shock Corridor”, 1963), sobre um jornalista que se finge de louco para investigar maus tratos dentro de um hospício. O que começa como um filme policial corriqueiro vira um pesadelo psicodélico e paranoico. Faça uma sessão dupla com “Ilha do Medo”, de Scorsese, e diga se o velho Martin não ajoelha toda noite num altar para Samuel Fuller.
Cineastas fazem filmes, mas são poucos os que fazem o seu cinema. Samuel Fuller é um deles. E perder essa mostra é um desperdício do seu tempo. Qualquer coisa que você fizer no lugar vai ser menos divertido.