O jornalista inglês Peter Doggett escreveu o livro definitivo sobre o longo e doloroso processo de separação dos Beatles: “A Batalha Pela Alma dos Beatles”, que acaba de sair no Brasil pela Editora Nossa Cultura.
Doggett trabalhou na revista “Record Collector” e lançou diversos livros, como “Are You Ready for the Country”, sobre a fusão da música country com o rock, e o sensacional “The Man Who Sold the World – David Bowie in the 70s”, análise de todas as músicas que David gravou nos anos 70. O livro sobre Bowie foi meu lançamento favorito de 2012.
Fiz, para a “Folha”, uma entrevista com Dogget sobre o livro dos Beatles (leia aqui). Como o papo não coube todo no jornal, resolvi publicar a íntegra aqui. Aproveite.
Em seu site, você diz que é fã dos Beatles desde 1970, o ano em que eles se separaram. Que lembranças vocês tem da separação?
Posso honestamente dizer que a separação dos Beatles não teve nenhum impacto em mim na época. A notícia só foi manchete por um dia, e você precisa lembrar que a idéia de uma reunião deles rolou durante muito tempo, nos anos 70, então eu achava que era só uma questão de tempo até eles voltarem.
Quanto tempo você levou pesquisando e fazendo entrevistas para o livro?
Não foi o processo normal de escrever um livro, em que você começa do zero e estabelece um prazo de um ou dois anos para escrever o livro. Eu já tinha a idéia há algum tempo, e tinha uma grande caixa em que guardei, por muitos anos, muitos artigos e documentos. Por um bom tempo eu não me senti preparado para escrever o livro. Quando senti que estava pronto, já tinha entrevistado muitas das pessoas relevantes da história nos 20 anos anteriores e juntado material desde 1970, primeiro como fã, depois como jornalista. Eu tinha tanto material que o processo de escrever e fazer as entrevistas que restavam durou apenas um ano.
De todas as entrevistas que você fez para o livro, qual foi a mais surpreendente e reveladora?
Entrevistar Derek Taylor (1932-1997), o assessor de imprensa dos Beatles, foi uma grande revelação. Falei com ele pela primeira vez em 1988. Ele foi incrivelmente honesto sobre as qualidades e fraquezas dos Beatles como seres humanos e sobre os problemas que tiveram com a Apple. Foi muito interessante falar com Yoko Ono, claro. Mas duas das últimas entrevistas que fiz para o livro foram fascinantes: Louise, irmã de George Harrison, não só explicou em detalhes como George recebeu a notícia da morte de John, como foi muito franca sobre o que ocorreu com os bens de George desde sua morte. Infelizmente, muito do que ela disse não pôde ser publicado por razões legais. E finalmente teve Al Stecker, braço direito de Allen Klein em Nova York durante os anos em que Klein empresariou John, George e Ringo. Stecker explicou, pela primeira vez, por que os três largaram Klein. Não foi, como se supunha no passado, porque os três não confiavam em Klein, mas porque eles queriam voltar a tocar com Paul em 1973, mas sabiam que isso não aconteceria enquanto Klein estivesse envolvido.
Você soube de alguma reação de McCartney ou Ringo sobre o livro?
Não, mas não esperava que eles reagissem. Suponho que eles não devem ter gostado do livro. Mesmo que eu tenha tentado ser justo e imparcial ao relatar suas disputas e problemas, eu ainda estava revelando aspectos dolorosos do passado, e tenho certeza que eles não queriam voltar a pensar nisso. Uma coisa interessante, no entanto, foi que pouco antes de o livro ser publicado na Inglaterra, o escritório de Paul McCartney recebeu uma cópia. Sem razão aparente, McCartney deu uma série de entrevistas para grandes publicações, enfatizando como ele e Lennon estavam próximos antes da morte de Lennon, em 1980, embora, como informo no livro, ele e Lennon nunca mais se viram depois de 1976. Talvez tenha sido uma coincidência, mas acredito que Paul tenha lido meu livro, percebido o quadro triste que o texto passava sobre o relacionamento dele com Lennon depois de 1968, e tentado dar a sua versão, mais alegre, antes que as pessoas pudessem ler a minha.
A separação dos Beatles parece ser um dos momentos decisivos do colapso do sonho dos anos 60, junto com as mortes de Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, o fiasco em Altamont (quando um show dos Stones terminou em violência e morte) e os assassinatos cometidos pela gangue de Charles Manson. Que impacto teve a separação dos Beatles na cena musical da época?
Acho que o impacto da separação dos Beatles tem se tornado mais importante à medida que os anos 70 vão ficando para trás. Havia um sentimento real, em revistas de rock como “Rolling Stone”, que algo havia mudado na cultura, que o idealismo dos anos 60 havia sido ferido ou morto. No entanto, havia tanta coisa sendo escrita sobre uma possível volta dos Beatles, que existia uma grande esperança de que eles voltariam. Então, na época, o desastre em Altamont, os crimes de Manson e as mortes que você citou tiveram um impacto cultural mais forte. Foi só depois que as pessoas começaram a perceber que a separação dos Beatles foi o símbolo perfeito de uma cultura em ruínas.
O aspecto mais surpreendente do livro, para mim, foi descobrir como a banda era ingênua na condução de seus negócios. Isso também te surpreendeu?
Acho que eu já sabia que eles não eram bons negociantes. ELES sabiam que não eram bons negociantes. Fiquei triste por eles. Eles cresceram confiando nas pessoas que estavam próximas. Depois de 1969, no entanto, se viram sem ninguém em quem pudessem confiar. Foi fascinante pesquisar montanhas de documentos e descobrir quantas empresas surgiram da fama e riqueza dos Beatles. Tudo que eles queriam era fazer música e viver com certo grau de conforto, mas acabaram responsáveis por centenas de corporações em todo o mundo e milhares de advogados. O que mais me impressionou foi que eles continuaram a fazer música nos anos 70, mesmo tendo reuniões diárias com advogados e quando todo mundo estava querendo processá-los e eles estavam processando uns aos outros.
Os Beatles começaram muito novos e ingênuos, sonhando em mudar o mundo, mas não conseguiram suportar a dura realidade da vida corporativa. Você acha que a trajetória deles, de certo modo, espelha o que foi a década de 60, quando a juventude caiu na real?
A resposta simples é “sim”. Os Beatles descobriram algumas grandes verdades: você não pode se envolver em negócios sem se tornar um negociante; você não pode entrar no mercado sem se tornar um capitalista; você não pode supor que, só porque você tem ideais fortes, o resto do mundo vai dividi-los com você. Eles receberam uma lição dolorosa, que foi divida por toda a geração deles.
Alguma chance de seus outros livros saírem no Brasil? Você está trabalhando em um novo livro?
Estou no meio de um livro que conta a história da música pop nos últimos cem anos, tentando explicar como a música afetou tudo, da maneira como andamos na rua à forma como fazemos compras e nos vestimos. Só termino esse livro em 2014. Espero que saia no Brasil, já que vai refletir a incrível influência que a música brasileira teve na cultura musical do mundo desde os anos 30. Alguns anos atrás, escrevi um livro chamado “There’s a Riot Going On”, sobre as ligações entre o rock e as políticas revolucionárias dos anos 60 e 70, e escrevi sobre a Tropicália de Gilberto Gil e Caetano Veloso.