Outro dia, recomendei aqui o grande “Kes” (1969), do cineasta britânico Ken Loach.
“Rota Irlandesa”, o mais recente filme de Loach, está em cartaz no Brasil. Mesmo não estando no mesmo nível de “Kes” e de outros filmes de Loach, como “Riff Raff” e “Agenda Secreta”, vale conferir.
O filme gira em torno de mercenários contratados como seguranças por grupos privados no Iraque. Eram ex-soldados recrutados para fazer escolta de políticos e jornalistas por Bagdá, e que praticamente recebiam carta branca dos Estados Unidos e dos países invasores para tratar a população iraquiana a ferro e fogo.
“Rota Irlandesa” era o nome dado à estrada que ligava o aeroporto de Bagdá à “Zona Verde” da cidade, dominada pelos americanos. “É a estrada mais perigosa do mundo”, diz um personagem do filme.
A história começa em Liverpool, em 2007, quando Fergus (o excelente Mark Womack), ex-chefe de um desses grupos, recebe a notícia de que o amigo Frankie (John Bishop) morreu em uma emboscada iraquiana.
Torturado pela culpa (Fergus havia convencido Frankie a trabalhar no Iraque) e pela vergonha do tratamento desumano a que submetia os iraquianos, Fergus resolve investigar a morte do amigo, e acaba encontrando sinais de uma conspiração.
“Rota Irlandesa” tem a forma de um “thriller”. Lembra muito “Agenda Secreta”, o ótimo filme de Loach sobre o esquema para tentar encobrir a morte de um ativista político na Irlanda do Norte.
O roteiro tem falhas, e algumas sequências parecem forçadas e implausíveis. Mas a história é tão boa e os atores, tão convincentes, que os defeitos não tiram a força do filme.
Se você não conhece a obra de Ken Loach, “Rota Irlandesa” pode ser um bom ponto de partida. Entre os filmes em cartaz, é um dos poucos que não trata o espectador como um cretino.
P.S. Estou fora e com acesso limitado à Internet. Por isso, alguns comentários podem demorar a ser publicados.
Sábado, às 18h50, a HBO reprisa um dos melhores telefilmes dos últimos tempos: “Virada no Jogo” (“Game Change”), de Jay Roach.
O filme recria os bastidores da campanha presidencial norte-americana de 2008 e a escolha da polêmica Sarah Palin como candidata a vice-presidente na chapa Republicana.
Um resumo da história: o candidato Republicano à presidência em 2008 era John McCain, um herói de guerra que havia sido preso e torturado no Vietnã.
McCain tinha a difícil tarefa de evitar uma vitória do Democrata Barack Obama. O país vivia os últimos dias de agonia do impopular George Bush, e Obama era favorito nas pesquisas.
O estrategista da campanha de McCain, Steve Schmidt, o convence a fazer uma escolha ousada para vice, uma figura desconhecida do grande público, mas que poderia sacudir a campanha Republicana: Sarah Palin.
Palin tinha 44 anos e era governadora do Estado do Alasca. Era bonita e mão de cinco filhos. Pouco se sabia sobre ela. Schmidt achava que ter uma mulher como vice fortaleceria as chances de McCain, que perdia de lavada para Obama no voto feminino.
No início, a estratégia deu certo: Palin se mostrou carismática, e a novidade de ter uma mulher como vice agitou a campanha.
Assim que a imprensa passa a investigar o passado de Sarah Palin, surgem revelações nada agradáveis. E pior: ela se revela uma trapalhona da pior espécie, uma Vicente Matheus de saias, capaz das maiores gafes.
Numa entrevista à TV americana, hoje lendária, Palin disse que era qualificada para lidar com a Rússia devido à proximidade do Alasca com o país: “Dá até para ver a Rússia do Alasca!” A frase virou piada nacional.
Depois, disse que a África era um país, mostrou desconhecer a diferença entre as Coréias do Sul e do Norte, e acusou Saddam Hussein de ter derrubado as Torres Gêmeas. Faz o Tiririca parecer o Churchill.
No filme, Julianne Moore faz Sarah Palin, Ed Harris faz John McCain e Woody Harrelson interpreta Steve Schmidt. É muito ator bom junto.
O filme não só destrincha os bastidores da campanha, mas também mostra como a democracia, mesmo em sua esfera mais alta e poderosa, é sujeita, de acordo com as circunstâncias, a conviver com personagens como Sarah Palin.
Em certa hora do filme, Palin percebe que é uma estrela. E a mulher vira um monstro, assustando ao experiente Steve Schimidt e até ao próprio McCain. Ambos percebem que acabaram criando um monstro. Com quem o mundo convive até hoje.
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Há algumas semanas, o caderno “Comida”, da “Folha”, fez uma edição especial sobre padarias em São Paulo (leia aqui).
Fiz, em parceria com Marília Miragaia, os textos da edição, que tratavam de um fenômeno muito presente nas novas padarias paulistanas: o gigantismo. Na “nova” padaria, o pão é coadjuvante.
Hoje, as padarias viraram verdadeiros centros de alimentação, servindo pizza, sopas e até sushi. Muitas funcionam 24 horas.
A maioria dos entrevistados louvou o novo “modelo”. O Presidente do Sindicato das Padarias de SP disse: “Hoje não há mais espaço para a padaria que só vende pão e leite”.
Para mim, o mais interessante foi conversar com arquitetos e professores para tentar entender um fenômeno que vem ocorrendo paralelamente a essa mudança de perfil das padarias: eu queria saber por que todas elas parecem saguões de aeroporto ou praças de alimentação de shopping.
Há um bom tempo que padaria em São Paulo parece tudo, menos padaria.
E tome chão que imita mármore, paredes de vidro, totens que cospem comandas eletrônicas e mobiliário que lembra lanchonetes de “fast food”.
“A arquitetura dessas padarias está ligada a espaços genéricos de consumo, como saguões de aeroportos, free shops e shopping centers”, me disse Marcelo Marino Bicudo, arquiteto e professor da FAU-USP. “São locais de permanência curta e que oferecem serviços e facilidades, como TV, wi-fi, venda de revistas, etc.”
Outro arquiteto e professor da FAU, Francisco Spadoni, diz: “A arquitetura está ligada ao uso do espaço. E quando o espaço é usado para diversas finalidades, a arquitetura reflete essa confusão. E as padarias viram esse pastiche, um espaço sem controle, com uma falsa visão de modernidade.”
Ainda segundo Spadoni, isso não ocorre em outros países, onde as padarias parecem ter “cara” de padaria: “O problema é que, no Brasil, não existe uma legislação sobre o que uma padaria pode ou não vender. Na França, uma ‘boulangerie’ só pode vender pães e bolos. Existe uma ‘tipologia’ de padaria, que é um fato estético, da construção, que você consegue identificar como uma recorrência. Em São Paulo, não existe mais uma tipologia de padaria.”
“No Brasil, infelizmente, não damos valor à história”, diz Bicudo. “São Paulo é uma cidade que responde à lógica do capital. A questão econômica é a mais importante. A lógica homogeneizante é importante para o paulista.”
Outra conclusão: ao expandir demais seus serviços, as padarias acabaram por deixar de lado seu principal produto. “O pão agora é um detalhe”, diz Spadoni. “A luta pelos clientes se dá por outras coisas: café da manhã, almoço, jantar, venda de jornais, de revistas, etc.”
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“Is David Bowie really dying?”, perguntou o Flaming Lips no título de uma canção lançada em 2011.
Assim como a banda, milhões de fãs de Bowie em todo o mundo têm feito a mesma pergunta: o que está acontecendo com ele?
Dias atrás, Bowie foi flagrado por um fotógrafo andando por Nova York, cidade que adotou há quase 20 anos. Mora num loft gigante no Soho, com a esposa, a ex-modelo Iman, e a filha, Alexandra (veja aqui um artigo do “Daily Mail”).
Bowie não compõe nada há nove anos e desde 2006 não canta uma de suas músicas num palco. Recusou até o convite para tocar no encerramento das Olimpíadas de Londres, onde “Heroes” foi usada como música-tema. Amigos e parceiros não falam com ele há anos.
Tudo culpa, dizem os chegados, de um ataque cardíaco que Bowie sofreu em 2004, no camarim após um show na Alemanha.
Depois disso, o camaleão mudou de vida: parou de fumar, trocou a dieta e sossegou. Bom para ele, ruim para nós.
Por coincidência, estou terminando de ler um livro sensacional sobre o artista: “The Man Who Sold the World – David Bowie and the 1970s”, de Peter Doggett.
Doggett, que já havia escrito o excelente “You Never Give Me Your Money”, sobre o fim dos Beatles, analisa toda a discografia de Bowie nos anos 70, música a música.
O livro é inspirado em “Revolution in the Head” (1994), volume fundamental de Ian MacDonald sobre os discos dos Beatles (MacDonald, um dos grandes críticos musicais ingleses, foi convidado a escrever um livro semelhante sobre Bowie, mas cometeu suicídio em 2003).
Doggett aceitou a missão. E fez um livro brilhante, em que contextualiza a obra de Bowie nos anos 70 e ajuda o leitor a entender aquela época tão conturbada. O autor chega a uma conclusão: ninguém, naquela década, foi tão ousado e genial quanto Bowie.
Sempre fui fascinado pelos anos 70. Acho a década mais interessante da música pop, quando os sonhos hippies se transformaram em pesadelo e a música “caiu na real”.
Doggett começa traçando um perfil de David Jones, um jovem tímido crescendo na cinzenta Londres do pós-Guerra. A parte materna da família tinha uma temerosa incidência de esquizofrenia, e vários parentes do menino foram internados em manicômios e até lobotomizados. David – ainda Jones – cresceu com a certeza de que, um dia, iria juntar-se a eles.
Talvez isso tenha moldado sua visão cínica do mundo, ou uma tendência a ver a realidade de uma forma pessimista e de nadar contra a maré.
Sua obsessão por Andy Warhol e a discussão sobre os limites entre arte e realidade o fizeram criar uma visão muito própria da cultura pop. Bowie estudou design e trabalhou por um tempo como publicitário. Sempre se interessou pela forma como a realidade absorvia e influenciava a arte.
A verdade é que Bowie estava sempre anos à frente de todo mundo. Enquanto seus contemporâneos na música sucumbiam ao imaginário hippie, Bowie fazia uma música pop que misturava o folk de Dylan a uma estética futurista e sexualmente ambígua.
Meses antes da chegada do homem à Lua, em 1969, Bowie gravou a cáustica “Space Oddity” – relançada depois, para coincidir com a missão Apollo 11 – em que zombava da obsessão pela conquista espacial e questionava o real significado deste “progresso”.
Depois, inovou ao inventar um personagem – Ziggy Stardust – com prazo de validade. Foi o primeiro herói pop que já nasceu morto, com data de extinção anunciada por seu criador. Era seu Frankenstein, uma grande trapaça, um comentário irônico sobre a criação de mitos no pop. Coisa de gênio.
Ainda estou no meio do livro. Já passei a fase “Diamond Dogs” (1974). Não posso esperar para ler o que Doggett diz sobre a fase americana de Bowie, com “Young Americans” (1975) e, principalmente, sobre a “Trilogia de Berlim”, com “Low” (1977), “Heroes” (1977) e “Lodger” (1979), o ápice da genialidade de Bowie.
Espero que alguém lance o livro de Doggett no Brasil. É daquelas leituras que abrem horizontes e nos fazem lembrar que música pop importa. De verdade.
Quem acompanha o blog sabe que eu idolatro Neil Young.
Acho Young um artista imprevisível e dono de uma visão particular do mundo, capaz de criar imagens tão lúdicas quanto fantasmagóricas em suas canções. Suas letras são carregadas de simbologia e mensagens crípticas, que podem significar mil coisas. Um gênio.
O problema é que todas essas qualidades se manifestaram também em sua nova empreitada, a de biógrafo. E, convenhamos, a pior coisa que um biógrafo pode ser é pouco objetivo.
“Neil Young – A Autobiografia”, que acaba de sair no Brasil, é uma decepção. Na verdade, quem conhece a obra de Young não poderia esperar nada diferente.
Não dá para exigir objetividade e imparcialidade de um sujeito que foi processado pela própria gravadora por fazer música propositalmente anticomercial, que vem iludindo seus fãs há décadas com promessas de relançamentos que nunca chegam, e que tentou impedir uma biografia com a qual colaborou por anos (“Shakey”, de Jimmy McDonough, o melhor livro sobre Young) .
Young nunca fez nada de forma simples e ordeira. Sempre brigou com gravadoras, lançou discos clássicos (“On the Beach”) só para proibir sua reedição por 30 anos, brigou e fez as pazes e brigou novamente com zilhões de amigos e colaboradores. Não é um sujeito dos mais fáceis.
Sua autobiografia é exatamente assim: uma bagunça.
Para começar, Young optou por escrever de forma não cronológica, com capítulos (são 68!) que viajam no tempo. Mas nem nos próprios capítulos ele consegue se limitar a um determinado período.
Um capítulo pode começar falando de sua infância no Canadá, dar um salto de 20 anos no tempo para falar de sua obsessão por miniaturas de trens, e terminar com a descrição da gravação de um disco nos anos 2000.
Figuras importantes em sua vida – familiares, músicos, produtores, empresários – surgem e somem da narrativa, muitas vezes sem uma descrição elucidativa para o leitor.
Passagens fundamentais de sua carreira são contadas de forma superficial. Ele pouco fala da gravação de seus discos e passa rapidamente pelas lendárias brigas que teve com o grupo Buffalo Springfield e com Crosby, Stills e Nash.
A impressão é que Young fez um diário, depois jogou todas as páginas no chão e colou-as no livro, sem nenhuma ordem.
Claro que há muita coisa interessante para os fãs. Sua relação com a família – ele tem dois filhos com paralisia cerebral – é contada de maneira tocante, assim como o amor pelo pai, um famoso autor e jornalista canadense.
Mas, para quem não conhece tanto a obra dele e quer saber mais, esta autobiografia não é o melhor lugar para começar. Infelizmente.
Ontem à noite, Santos e Atlético Mineiro faziam um jogão na Vila Belmiro.
O Santos abriu o placar aos 19 segundos de jogo. Onze minutos depois, Neymar fez um gol antológico. O Galo não se abalou: reagiu, fez um gol e começou a dominar o jogo.
Era um daqueles jogos para entrar em qualquer lista de melhores do ano, com uma disputa particular entre os dois maiores craques em atividade no Brasil: Neymar e Ronaldinho Gaúcho.
Até que, aos 25 minutos, houve uma disputa de bola na área do Galo. O zagueiro do Galo, Rafael Marques, sofreu um golpe na cabeça e caiu desacordado.
O que se seguiu foi uma das maiores tragicomédias que já vi: por onze minutos, o jogador ficou deitado no gramado, sem que a ambulância conseguisse chegar até ele. Onze minutos para uma ambulância entrar no campo e retirar o jogador. Uma eternidade.
As câmeras de TV mostravam o desespero dos jogadores dos dois times, pedindo pressa à ambulância. Alguns jogadores, incluindo Neymar e Léo, do Santos, chegaram a arrastar uma enorme placa de publicidade para ajudar a entrada da ambulância.
Depois de alguns minutos angustiantes, a revelação: a ambulância não poderia entrar no gramado. Havia um degrau de cerca de um metro de altura, que não permitia a entrada no gramado. A solução foi botar o jogador numa maca e levá-lo até a ambulância, de onde ele seguiu para o hospital.
Segundo o noticiário, o estado de Rafael Marques é satisfatório. Nada de muito grave parece ter acontecido como jogador. Ainda bem. Porque, se dependesse da CBF, ele estaria morto.
O episódio deixa evidentes duas coisas:
Em primeiro lugar, nunca houve um treinamento de socorro na Vila Belmiro. Se tivesse ocorrido, os bombeiros e médicos saberiam que a ambulância não consegueria entrar no gramado.
Em segundo lugar, mostra que nunca houve uma fiscalização no estádio. Como alguém pode liberar um estádio onde a ambulância não pode entrar no campo?
Rafael Marques deu sorte. Se tivesse uma parada cardíaca, poderia ter o mesmo destino de Serginho, do São Caetano, que morreu no campo esperando o socorro.
O pior é assistir a este espetáculo revoltante de desorganização, improviso, esculacho e falta de respeito, e depois ser brindado com um comercial de cerveja que zomba dos “pessimistas” e garante que a Copa no Brasil vai ser “uma festa”. Não vai ser não.
P.S.: Eu havia publicado, no blog, um texto sobre a autobiografia de Neil Young, mas o caso de Rafael Marques me obrigou a mudar. O texto sobre Neil será publicado amanhã.
Este é um texto diferente do que você está acostumado a ler aqui no blog.
É um texto mais extenso que o normal. Peço um pouco de paciência. Leia com calma, que vale a pena.
É a história de como uma iniciativa bancada com leis de incentivo e aparentemente benéfica à população se revelou um desperdício de dinheiro público e um prejuízo para comerciantes e profissionais locais, além de uma frustração imensa para uma cidade.
Tudo começou em maio de 2012, quando aconteceu em Paraty (RJ) a Virada Digital.
Era um evento de “inclusão digital”, que prometia deixar para a cidade um legado de tecnologia e infraestrutura de Internet e levar conhecimento a comunidades carentes da região.
A Virada Digital foi bancada por isenção fiscal e patrocinada por estatais e grandes empresas do setor de telecomunicações. Teve apoio institucional da prefeitura local, dos governos Federal e do Estado do Rio e patrocínio da Petrobras, Caixa Econômica Federal, Embratel e Cisco.
O evento foi realizado por uma empresa chamada Ninui, de propriedade de Roberto Andrade. Andrade foi um dos responsáveis pela vinda da Campus Party ao Brasil e foi coordenador de Internet da campanha de Dilma Roussef à Presidência, em 2010.
A Ninui conseguiu aprovação de captação de recursos com o Ministério da Cultura (2,3 milhões de reais) e por meio da Lei Estadual do Rio de Janeiro (1,47 milhão de reais). A Petrobras (600 mil reais) e Embratel (150 mil reais) usaram a Lei Estadual do Rio.
Veja um vídeo em que curadores e o organizador falam sobre a expectativa em relação ao evento:
Durante os três dias do evento, foram realizados debates e palestras sobre cultura digital e instalados pontos de internet de alta velocidade na cidade, para uso gratuito da população.
Entre os debates, houve um com o tema “Paraty Digital – Paraty Século 21”, que contou com Gilberto Gil (que gravou um depoimento em vídeo), especialistas em inclusão digital e com Pablo Capilé, da rede Fora do Eixo, que deixou esse depoimento surpreendente em que revela que Paraty fica no interior:
Qualquer morador da cidade poderia dar um belo depoimento sobre a moderníssima rede de Internet da região, que não resiste a uma garoa, ou sobre as inúmeras comunidades rurais sem acesso à web, ou ainda sobre a velocidade supersônica da conexão local (no momento em que escrevo, exatos 439,83 kbps).
Mas o evento trouxe esperanças de melhoria aos moradores. Depois da Virada Digital, fomos informados, tudo mudaria.
Em entrevistas e no próprio release da Virada Digital, o organizador prometeu que um cabeamento de fibra ótica de 100 Mb de velocidade, que a Embratel colocaria no evento, ficaria para a cidade.
“Ela (a fibra ótica) veio do mar através de Trindade (…). Esta fibra ótica ficará na cidade após o evento, é compromisso da Embratel, o que representará um salto de qualidade no serviço de internet em Paraty”, afirmou Roberto Andrade ao site Paraty.com, em abril de 2012.
A Embratel, no entanto, não confirma isso. Procurada pela Folha, a empresa afirmou: “A estrutura utilizada na cidade de Paraty-RJ foi projetada especificamente para o evento Virada Digital.” A empresa não informa se planeja explorar comercialmente o cabeamento.
“A Internet aqui na nossa região é tão ruim que até parece aqueles telefones de fio e caixas de fósforos que fazíamos quando crianças”, disse Amaury Barbosa, Secretário de Cultura de Paraty. “Recebemos a promessa do Sr. Roberto Andrade de que receberíamos computadores e a fibra ótica, colocada por ocasião do evento, deixaria um benefício para a cidade.”
Outra reclamação da Prefeitura se refere à promessa de doação de equipamentos de informática. O release da Virada Digital diz: “Todo o aparato tecnológico do evento, como (…) computadores instalados, será doado à cidade e ficará como legado do evento.”
“Estávamos contando com o apoio de uma grande marca de computadores”, disse Andrade. “Fomos avisados na véspera do evento que a marca não participaria (…) Isto nos pegou de surpresa.”
Apesar de ter sido avisado “na véspera”, o evento manteve, em seu release de imprensa, a informação sobre a doação. “Reconheço que deveríamos ter retirado do release o assunto dos computadores”, afirma Andrade. “Foi um erro de comunicação”.
A Virada Digital também deixou dívidas com agências de turismo, pousadas, restaurantes e profissionais da cidade.
Apurei onze casos, com dívidas que vão de 5 mil a 160 mil reais. Tive acesso a contratos, recibos, e-mails e cheques da Ninui que foram usados para pagar fornecedores e, depois, sustados. Até o rapper MV Bill, um dos curadores do evento, tinha dinheiro a receber da Virada Digital.
Uma coordenadora de logística, que recebeu cerca de 2 mil reais para trabalhar no evento, ficou com dívidas de mais de 50 mil reais em pousadas e agências de turismo da cidade. “Fiz as reservas para o evento, que não pagou ninguém. Agora é meu nome que está sujo”, diz a coordenadora, que pediu para não ser identificada.
O escritório da Ninui, empresa que recebeu as verbas via lei de incentivo, foi fechado no fim de setembro.
Mesmo com todos esses problemas, a Virada Digital anuncia outras edições. Segundo o site da Virada, o evento volta a acontecer em 2013 no Rio de Janeiro e em 2014 nas cidades-sede da Copa do Mundo.
Se eu tivesse de escolher um país para morar, iria correndo para a Espanha. Com crise econômica e tudo.
Gosto de tudo por lá: as pessoas, o espírito festeiro, a beleza das cidades, o senso de coletividade, o respeito ao passado, o apreço pelo bem público, a força que a população dá aos pequenos comércios locais…
Acho que a Espanha oferece uma mistura incomparável de modernidade e informalidade. É um país organizado sem ser obcecado pela ordem. Quase não se vê placas de “proibido” por lá. O dia a dia parece ser guiado mais pelo bom senso do que pela vigilância.
E a comida é incomparável. Poucas coisas na vida são melhores que andar de taberna em taberna, provando tapas e tomando vinho, sangria ou cava, um delicioso espumante da região da Catalunha.
Os preços, especialmente para quem está acostumado com restaurantes no Brasil, estão baratos. Acabei de voltar de uma viagem à Espanha. Nossas refeições, para duas pessoas, custaram todas entre 20 e 40 euros (52 e 104 reais). Uma garrafa de vinho dificilmente custa mais de 20 ou 25 euros. As tapas variam de 3 a 5 euros.
Aqui vai uma pequena seleção de bons restaurantes de tapas, em Madri e Sevilha. Espero que seja útil.
MADRI
Casa Lucas (Cava Baja, 28) – O lugar tem cinco mesas, senta 20 pessoas e vive lotado. Conseguir jantar sem reserva é milagre. Não sem razão: é um dos melhores restaurantes que conheço. Foi o único lugar em que pedi três vezes o mesmo prato na mesma noite – uma “tosta” de gelatina de espinafre e alho-poró com camarão. O prato de foie de pato com com frutas caramelizadas também não é deste mundo. Confira…
La Concha (Cava Baja, 7) – Outra taberna pequena e com a vantagem de não fechar no meio da tarde, como é costume. O serviço é super amigável: o atendente do bar pega seu pedido, serve os drinks, e ele mesmo vai à cozinha preparar a comida. Provamos um carpaccio de camarão branco com azeite e ervas que estava sensacional.
Juan Bravo 25 – O nome deste lugar é também seu endereço. Fica no bairro de Salamanca, uma espécie de Jardins de Madri, com lojas da Louis Vuitton e um irritante ar de novo-riquismo. Não passaríamos cinco minutos no bairro se não fosse por este restaurante, que serve ótimas tapas frias (caranguejo desfiado, bacalhau com aspargos) e tem uma agradável área coberta, num bulevar no meio da rua.
Chocolat (Santa Maria, 30) – Comer churros com chocolate é um dos grandes prazeres lariquentos dos espanhóis. Conhecemos esse lugar por sugestão do dono de uma fábrica de churros. Dos seis ou sete lugares de churros com chocolate que visitamos, este foi o melhor.
SEVILHA
La Cantina (Mercado de Feria) – Eu moraria neste lugar. Colado às peixarias do mercado da rua Feria fica este botecão, que serve frutos do mar grelhados e fritos a um preço absolutamente ridículo. Fizemos um banquete de camarões, ovas de peixe, sardinhas, vieiras e mexilhões que custou a fortuna de 22 euros (58 reais). Só abre de 12h às 16h. Imperdível.
Al Aljibe (Alameda de Hercules, 76) – Fica na Plaza Hercules, lugar de agito noturno no bairro de Alameda e onde se concentram ótimas tabernas de tapas. O Al Aljibe tem mesas ao ar livre e tapas como lulas grelhadas com purê de abóbora. Bom demais.
La Mata 24 – Simpaticíssimo bar de tapas, vive lotado de locais e fica ao lado da Plaza Hercules. Tente o porco grelhado com chips de mandioca.
La Brunilda (Galera 5) – Perdido no bairro de El Arenal e sem nenhum turista por perto, este ótimo bar de tapas atende a uma clientela local e fiel. Os croquetes de “jamón” ibérico eram de primeira, assim como o frango grelhado com polenta e cogumelos salteados. Barato pacas.
Ovejas Negras (Hernando Colon 8) – Bar de tapas bonito e modernoso que, apesar de ficar em uma área bem turística da cidade, atrai muitos locais. Tem uma influência thai bem forte e uma sobremesa especialíssima, um cheesecake servido dentro de um pote de geléia.
O show já durava três horas e meia quando Leonard Cohen e banda terminaram a sequência matadora de “I’m Your Man”, “Hallelujah” e “Take This Waltz”.
As 15 mil e tantas pessoas que enchiam o Palacio de Deportes de Madri perderam o juízo: pais de família correram em direção ao palco, senhoras de aparência respeitável esqueceram os assentos marcados e partiram em direção ao homem. Muita gente chorava. Na nossa frente, três gerações – neta, mãe e avó – se abraçavam e gritava. Beatlemania.
Leonard Cohen, com as mãos unidas num tradicional gesto de agradecimento budista, recolhia os buquês de flores, as caixas de bombons e os bilhetes que os fãs haviam jogado no palco. A cena tinha uma beleza quase religiosa.
O público todo ficou de pé e assim permaneceu enquanto a banda saía do palco e retornava para o primeiro bis. Trinta minutos depois, quando Cohen terminou de cantar a sexta música do bis, todos continuavam de pé, gritando.
Quatro horas de show. Trinta e três músicas. Uma maratona de emoção, inspiração e virtuosismo musical, comandada por um popstar de 78 anos. Nunca vi nada igual.
O concerto teve uma comovente sensação de despedida. Assim que entrou no palco, Cohen, vestido impecavelmente de terno e chapéu, disse: “Amigos, não sei quando voltaremos a nos encontrar. Por isso, vamos fazer dessa noite um momento especial. Vamos dar a vocês tudo que temos.”
E deram mesmo. Ao final do show, Cohen estava esgotado. Sua voz falhava. Em algumas canções, como “The Gipsy’s Wife”, “Coming Back to You” e “Alexandra Leaving”, ele nem cantou, limitando-se a admirar as cantoras. A plateia, percebendo seu esforço, o aplaudia ainda mais.
A banda de Cohen tem nove músicos, incluindo três cantoras e o extraordinário violonista catalão Javier Mas, que, sozinho, já valeria o ingresso.
Pessoalmente, achei alguns arranjos melodramáticos demais. Na turnê anterior, me incomodou o saxofonista, dessa vez substituído por um violinista, igualmente perturbador. Prefiro os arranjos minimalistas dos discos. Me incomodei também com a overdose de vocais de apoio.
Mas é compreensível que Cohen apele para arranjos mais “grandiosos”: afinal, ele está tocando toda noite para 15, 20 mil pessoas, não numa cabaré enfumaçado. A Leonard, tudo se perdoa.
A devoção dos fãs é impressionante. E mais ainda por se tratar de um artista que nunca fez nada de forma simplória ou acessível.
Música pop sempre foi sobre simplicidade, sobre dizer as coisas da forma mais simples e direta: “Eu te amo”, “Eu te odeio”, “Vamos farrear a noite toda”.
Mas Cohen sempre foi mais interessado na palavra do que na mensagem. Ele é um esteta, para quem cada sílaba, cada vírgula, cada pausa, tem mil sentidos e mil interpretações. Na música pop, só consigo pensar em Bob Dylan e Joni Mitchell como seus pares.
A seu modo, Leonard Cohen é um popstar. E sabe disso. No show, ele tirava os chapéus para as cantoras e ajoelhava ao lado dos músicos a cada solo. Sua voz, embora não tenha mais a potência de outros tempos, ainda consegue emocionar. Seu fraseado é perfeito, e a maneira como canta, ora sussurrando, ora narrando, é única e inimitável.
Como ele próprio diz em “Tower of Song”: “Eu nasci assim, não tive escolha / Eu fui abençoado com uma voz de ouro”.
O repertório foi irretocável. Clássicos como “Dance Me To The End of Love”, “Bird on a Wire” e “Suzanne” se misturaram a canções do ultimo disco e a raridades como “The Guests”, que ele não havia tocado nessa turnê.
Ao final, Cohen disse: “Espero, de coração, que possamos nos encontrar novamente”, antes de liderar a banda numa linda versão de “Save the Last Dance for Me”, do The Drifters. E 15 mil pessoas saíram atordoadas de beleza pela noite de Madri, pensando se aquele teria sido, de fato, o último encontro com Leonard Cohen.