Foram quase três anos e meio de blog. Pelos meus cálculos, cerca de mil textos e 120 mil comentários de leitores.
Mas hoje é o último dia da “Confraria de Tolos” neste espaço. O blog está de mudança para uma nova casa.
Continuarei colaborando com a “Folha”, fazendo matérias especiais. E não poderia ser diferente: desde que assinei pela primeira vez um texto para o jornal, há mais de 20 anos, mantenho um casamento felicíssimo com a “Folha”.
Mesmo morando no Rio, nos anos 70, eu já preferia a “Folha” ao “Jornal do Brasil”, então o jornal da moda na Cidade Maravilhosa. Sempre foi meu jornal favorito e onde sempre sonhei em trabalhar.
Gostaria de agradecer à “Folha” por ter me dado a oportunidade de fazer esse blog.
Tive liberdade total para escrever sobre os mais variados assuntos. Nenhum colunista pode pedir mais que isso.
Obrigado a todo o pessoal da área técnica que me ajudou a colocar o blog no ar, apesar de minha incompetência tecnológica e informática.
Obrigado aos colegas de redação, pelas críticas e sugestões.
E obrigado, especialmente, aos leitores, que me aturaram por esse tempo todo.
É um clichezão dizer que a gente aprende com os leitores, mas é verdade. Não há um dia sem que um leitor indique um livro espetacular, um disco imperdível ou um artigo interessante.
Imagine que você está em 1963. Você decide ir ao cinema e escolhe um filme brasileiro com um nome chamativo.
Nosso cinema, na época, vivia de comédias e dramas históricos. Ainda não existia o Cinema Novo ou o Cinema Marginal da Boca do Lixo.
Você paga ingresso, entra na sala lotada, e escolhe um lugar.
A primeira imagem é a de uma bruxa, amaldiçoando os espectadores:
“Se você tem medo de ruas escuras… de andar por cemitérios… então vá embora! Não assista a esse filme!”
Logo depois, surge Josefel Zanatas, um coveiro popularmente conhecido por Zé do Caixão. Sujeito estranho, de capa preta, cartola, e unhas longas.
Pelos 85 minutos seguintes, Zé barbariza: mata o melhor amigo e depois estupra sua mulher; corta os dedos de um coitado com uma garrafa; castiga outro com uma coroa de espinhos retirada de uma imagem de Jesus.
Pìor: Zé blasfema, zomba da religião, come carne na Sexta-Feira Santa enquanto a procissão passa na janela de sua casa. Desafia Deus a enfrentá-lo.
Não dá nem para imaginar o tipo de reação que “À Meia-Noite Levarei Tua Alma” teve em 1963.
Quem presenciou as exibições diz que muita gente queria matar o diretor, José Mojica Marins.
Por outro lado, muita gente gostou. O filme ficou mais de um ano em cartaz em São Paulo.
Se você ainda não viu “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”, recomendo. Existe em DVD por aí e passa de vez em quando no Canal Brasil. É o maior exemplo de que é possível fazer um filme popular, baratíssimo e artisticamente relevante.
“À Meia-Noite” é um conto de fadas brejeiro com visual expressionista e um anti-herói nietzschiano como o cinema nunca viu.
É cinema caseiro, feito de improviso e em condições precárias, filmado em 13 dias num estúdio minúsculo em Santa Cecília, São Paulo,com um elenco quase todo de amadores.
Mas quem assiste ao filme sem preconceitos consegue enxergar o talento por trás das dificuldades de produção.
A fotografia e a montagem são primorosas. O roteiro é dinâmico e não deixa a ação diminuir por um minuto. Os cenários, embora paupérrimos, com suas lápides de papelão, dão ao filme um clima gótico-trash-suburbano de arrepiar.
E os efeitos especiais assustam pelo inusitado: para fazer um relâmpago que atinge uma árvore, Mojica desenhou diretamente no negativo; os fantasmas são pessoas filmadas em positivo.
Mojica não usava som direto e dirigia os atores durante as cenas. Isso era necessário para controlar um elenco formado por amadores e alunos de sua escolinha de cinema.
Há uma cena, em especial, que merece ser vista e revista: o primoroso plano-sequência em que Zé do Caixão desafia os mortos a voltar do Além e levar sua alma. É um dos grandes momentos do cinema brasileiro.
Hoje, José Mojica Marins sofre uma maldição: é muito mais conhecido que seus filmes. Todo mundo sabe quem é Zé do Caixão, mas poucos assistiram aos filmes. Está na hora de mudar isso.
Se você gosta de Mudhoney e do rock de Seattle, não deixe de ler “Mudhoney – The Sound and the Fury from Seattle”, do inglês Keith Cameron.
A biografia é a cereja no bolo de um ano sensacional para a banda, com os lançamentos de um discaço, “Vanishing Point”, e do documentário “I’m Now”.
Parece que o mundo está finalmente dando ao Mudhoney a moral que a banda sempre mereceu.
O Brasil tem posição de destaque no livro de Cameron. A banda diz que a recepção dos fãs brasileiros na turnê de 2001, a primeira do grupo no país, foi importante porque aconteceu numa época de turbulência no grupo, logo depois da saída do baixista Matt Lukin, e deu um novo ânimo para o Mudhoney.
Uma das histórias mais curiosas da turnê é relatada pro Cameron no livro: o dia em que a banda trocou de nome no palco. Foi um dos momentos mais surreais que já presenciei num show. Conheço a história em detalhes porque fui um dos organizadores daquela turnê.
Tudo começou quando tivemos a estúpida idéia de chamar nosso amigo Trovão para apresentar o Mudhoney no palco do Olympia, em São Paulo.
Para quem não conhece, Trovão é um astro da luta livre tupiniquim. Tem 1,90 m, pesa uns 140 quilos e é capaz de amassar um CD na palma da mão como se fosse um biscoito de polvilho. Para melhorar, tem uma voz gutural que lembra o Lemmy fazendo gargarejo.
Na noite do show, o Olympia estava muito cheio. Mais de 3,5 mil pessoas esperavam pela estreia do Mudhoney no Brasil.
No camarim, orientei Trovão sobre o que ele deveria falar:
– É só dar boas vindas ao público e anunciar o Mudhoney!
– Como é o nome da banda?
– Mudhoney!
Trovão teve uma idéia brilhante: para não esquecer o nome da banda, de quem nunca tinha ouvido falar, escreveu na palma da mão a pronúncia correta: “MU-DI-RRO-NEI”.
A expectativa do público era enorme. Quando as luzes apagaram, a galera urrou. Só que, em vez da banda, quem subiu ao palco foi Trovão. E sua maneira peculiar de “saudar” o público não foi lá muito bem recebido:
– E aí, cambada de filhos da p…! Vocês querem rock and roll?
Três mil e quinhentas pessoas reagiram xingando Trovão e arremessando copos de plástico, garrafas de água mineral e qualquer coisa que tivessem à mão.
– Vão pra p… que os pariu, seus v….! – gritou Trovão, sempre um lorde.
Da lateral do palco, gritei para Trovão anunciar logo a banda. Ele fez um sinal positivo com a cabeça, olhou para a palma da mão, e depois olhou para mim com expressão de preocupação.
– Saiu essa p… toda! – disse, mostrando a palma da mão, que só tinha um borrão azul.
Trovão se empolgou com a fartura de cerveja no camarim, tomou todas, e não percebeu que as garrafas molhadas, junto com o suor e o calor, haviam apagado o nome da banda.
Já que o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes vão implodir a Perimetral, por que não aproveitam e mandam pelos ares também a Rodoviária Novo Rio, que fica ao lado? Seria um favor ao Rio de Janeiro.
Garanto que milhões de cariocas, tanto os que usam a Novo Rio quanto quem trabalha nela, não se importaria em pagar ingresso na Área Premium para assistir ao último suspiro daquele monstrengo medonho e imprestável.
E olha que essa é a versão VIP da Novo Rio, que hoje tem até um shopping no segundo andar e um banheiro onde, por R$ 1,50, você pode usar um toalete sem o risco de encontrar um cadáver.
Mas de nada adiantaram esses ajustes cosméticos. A Novo Rio continua um pesadelo.
Um passageiro exige três coisas de uma rodoviária: facilidade de acesso, bom atendimento e rapidez no embarque. E a Novo Rio não oferece nenhuma das três.
Para começar, não tem acesso ao metrô, o que é uma piada. Sexta passada, com a Perimetral fechada e o trânsito caótico, a forma menos dolorosa de chegar à Novo Rio era andando desde a estação de metrô Cidade Nova, um passeio bucólico de 1500 metros por calçadas esburacadas, poças de urina e lagoas de água que jorrava de uma estação da Cedae, respirando o ar puro emitido pelos ônibus e caminhões rumo à Avenida Brasil. Com o sol forte e a ausência total de árvores e sombras, então, o passeio foi uma delícia. Um cadeirante ou um idoso simplesmente não teria conseguido.
Chegando na Novo Rio, o cenário era de confusão. Na fila para meu ônibus, mais de 30 pessoas eram atendidas por UMA funcionária, enquanto quatro outros funcionários da empresa batiam papo ao lado. Alguns clientes reclamaram, e o gerente explicou que só havia um terminal funcionando.
Mas nem esse terminal durou muito. Pouco depois, ouviu-se o grito: “Caiu o sistema!”
E assim, morto, o “sistema” permaneceu por 25 minutos, enquanto a fila aumentava e os funcionários da empresa sumiam – com exceção da coitada que fazia o atendimento e era xingada e amaldiçoada por todos os passageiros.
Perguntei ao gerente por que diabos eu tinha de pegar fila para imprimir minha passagem, já que havia comprado o bilhete pela Internet e impresso o comprovante. “Isso aí é só o VOUCHER, você tem de pegar fila pra imprimir a PASSAGEM”, explicou o sujeito. Retruquei com a pergunta óbvia: “Então por que a gente não pode imprimir de uma vez a passagem? Não seria mais lógico?”
Mas nada é muito lógico na Novo Rio.
Na fila, duas turistas chilenas não estavam entendendo nada. Também haviam comprado bilhetes pela Internet e ficaram surpresas quando o funcionário tentou explicar que elas teriam de pegar a fila para imprimir os bilhetes. “Isso é o VOUCHER, não é a PASSAGEM!”, dizia o rapaz.
Como sempre, a empresa acabou dando um jeitinho: os funcionários seguraram os ônibus que estavam saindo, separaram na fila quem tinha bilhete para os ônibus que já estavam atrasados, e arrumaram um gênio da computação que mexeu em alguns fios e deu um jeito de ressuscitar o sistema. Foi uma bela demonstração de trabalho em equipe, provando que, em termos de improviso, ninguém é tão profissional quanto nós.
Todo grande cineasta tem no currículo alguns filmes que, por alguma razão, não obtiveram o mesmo sucesso ou reconhecimento de suas obras maiores.
Paul Schrader, por exemplo: além de ter escrito “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, de Martin Scorsese, dirigiu ótimos filmes como “Vivendo na Corda Bamba” (1978), “Hardcore” (1979) e “Temporada de Caça” (1997) (leia aqui um pequeno perfil de Schrader que fiz para a “Folha” quando o cineasta esteve no Brasil, em 2012).
Mas um de seus filmes mais interessantes – e desconhecidos – é “Auto Focus”, que o canal MAX exibe na madrugada de sábado para domingo, à 1h45.
O filme conta a história real de Bob Crane (Greg Kinnear), um ator de TV norte-americano que ficou famoso nos anos 60 na série “Guerra, Sombra e Água Fresca”.
Assim que vira uma celebridade, Crane, que vivia uma vida pacata e era casado há 16 anos, descobre que é viciado em sexo e cai numa esbórnia épica até para os padrões de Hollywood, transando com fãs, “groupies” e com qualquer coisa que respirasse.
Para apimentar ainda mais as coisas, Crane conhece John Carpenter (Willem Dafoe, sensacional), um personagem manipulador e asqueroso, especialista na então nascente tecnologia de câmeras de vídeo.
Crane descobre algo de que gosta mais do que sexo: filmar a si mesmo fazendo sexo com trocentas mulheres. Alistando Carpenter de parceiro, passa a fazer sessões de filmagens de orgias.
“Auto Focus” mostra o processo de enlouquecimento e obsessão de Crane, e como isso provocou a decadência de sua carreira, depois que estúdios e produtores pararam de contratá-lo por causa de seus vícios.
É um dos filmes mais tristes sobre a efemeridade da fama e a linha fina entre o sucesso e a desgraça.
É também um filme pouco falado da carreira de Paul Schrader, um dos grandes nomes da extraordinária geração de cineastas e roteiristas americanos que surgiu nos anos 70. Difícil achar algo melhor para assistir na TV nesse fim de semana.
Este livro deveria ser obrigatório em qualquer escola de cinema: “The Friedkin Connection”, autobiografia do cineasta William Friedkin, diretor de “Operação França”, “O Exorcista” e “Viver e Morrer em Los Angeles”, entre outros filmaços.
Na verdade, chamar o livro de “autobiografia” é errado. Ele é muito mais sobre cinema do que sobre o próprio Friedkin.
O autor quase não toca em assuntos pessoais, passa voando por sua infância e adolescência, e leva 400 páginas para fazer a primeira menção à esposa e aos filhos. E olha que ele foi casado com atrizes conhecidas, como Jeanne Moreau e Lesley Anne-Down, e é casado com Sherry Lansing, ex-chefona da Paramount e da Fox.
Mas para quem quiser conhecer os bastidores de Hollywood e ler histórias reveladoras sobre a produção dos filmes de Friedkin, o livro é imperdível. Há muito tempo não me divertia tanto lendo as memórias de um cineasta.
Friedkin nunca foi de medir palavras. É considerado um sujeito de temperamento explosivo e imprevisível.
Ele confessa que usava essa fama para evitar problemas com produtores e estúdios. Não foram poucas as vezes em que fingiu ser maluco e violento só para assustar executivos.
No set de filmagem, uma de suas técnicas para extrair uma interpretação mais convincente de atores era surpreendê-los com tabefes no rosto (Friedkin diz que só usou essa técnica pitoresca três vezes na carreira).
Suas brigas com atores e fotógrafos são lendárias: ele despediu o compositor Lalo Schifrin de “O Exorcista” no meio da gravação da trilha sonora, diante da orquestra, e brigou com Max Von Sydow, o mitológico ator dos filmes de Bergman. Quando Von Sydow não conseguiu atuar convincentemente numa cena de “O Exorcista”, Friedkin simplesmente o mandou para casa e reescreveu a cena para que outro ator fosse o protagonista.
No set de “Operação França”, o diretor entrou em choque com Gene Hackman, então um ator desconhecido. Para provocar explosões de fúria em Hackman, que interpretava o intempestivo detetive “Popeye” Doyle, Friedkin o xingava por trás da câmera e fazia comentários grosseiros que tiravam o ator do sério. “Quando você vê Gene espancando alguém no filme, ele estava reagindo a mim, pode acreditar!”
O processo de pesquisa para seus filmes era intenso. Quando fez “Parceiros da Noite”, em que Al Pacino interpretava um policial infiltrado no submundo gay de Nova York, Friedkin passou meses freqüentando clubes de sadomasoquismo, inclusive usando, segundo ele próprio conta, sungas de couro e outros apetrechos. Brigou tanto com Pacino que o ator, até hoje, se recusa a falar do filme.
Estudantes de cinema vão se fartar com as descrições minuciosas das filmagens de algumas de suas sequências mais conhecidas.
A famosa perseguição de um carro ao metrô em “Operação França” só ficou do jeito que Friedkin queria depois que ele, em meio a um porre com o dublê, disse que ele era covarde e desafiou o sujeito a mostrar que podia fazer melhor. “Ah é? Você quer ver o que é dirigir?”, retrucou o dublê, torto de bebida. “Eu faço, mas você vai sentado no banco da frente.” Friedkin aceitou o desafio: na manhã seguinte, o dublê dirigiu um carro a 150 km por hora por 30 quarteirões no Brooklyn, passando por cima de calçadas e apavorando pedestres. Com Friedkin no banco da frente, segurando a câmera.
Algumas passagens são engraçadíssimas. Friedkin conta que pediu para o produtor contratar, para o papel do vilão em “Operação França”, Paco Rabal, que havia trabalhado com Luis Buñuel em “A Bela da Tarde”. mas o produtor contratou, por engano, Fernando Rey, que também havia trabalhado com Buñuel, mas em “Tristana”. O engano só foi descoberto na véspera da filmagem, quando Friedkin encontrou Rey: “Não lembrava que você usava cavanhaque!”
P.S.: Aqui vai uma pequena homenagem ao grande Jorge Dória, figura inesquecível de nosso cinema, teatro e TV:
Qualquer um que tenha filhos pequenos deve se preparar para algumas perguntas que, inevitavelmente, surgirão algum dia.
“Como eu nasci?”, “Por que fulaninho tem pipi e eu não tenho?” e “Como é que eu saí da barriga da mamãe?” são clássicas.
Aqui em casa, a fase de perguntas anatômicas e gestacionais foi logo seguida pela fase existencialista, motivada pela morte de uma bisavó nonagenária que nossa filha mal conheceu.
“Como é que se morre?”, “Pra onde a gente vai depois de morrer?” e “Eu também vou morrer algum dia?” foram algumas das questões.
Falamos a real: “As pessoas nascem, crescem, ficam velhinhas e morrem. Quando elas estão bem velhinhas e muito fraquinhas, o coração para de bater, e a pessoa morre.”
A explicação provocou toda sorte de momentos embaraçosos: era só pintar um idoso na frente, que ela perguntava: “E aquele velhinho ali, vai morrer logo também?”
Até então, essas questões foram conversadas em bases hipotéticas, e não empíricas. E quem nunca experimentou uma perda não pode saber o que ela significa ou como você vai reagir a ela. Só passando pela experiência.
Mas não demorou.
Há algumas semanas, achamos uma vira-lata na rua. Nossa filha se afeiçoou à cachorrinha e decidimos adotá-la. Ganhou o nome de Granola.
Acontece que já temos dois cães, muito maiores que a vira-lata, e eles não a aceitaram de jeito nenhum. No dia em que a levamos para casa, os dois tentaram atacá-la.
Pesquisamos na Internet, lemos bastante sobre o assunto e tentamos de tudo para conseguir que os dois aceitassem a vira-lata. Mas eles são bichos muito fortes e territorialistas, e ficavam furiosos com a presença dela.
Tivemos de isolar a vira-lata em casa. Os dois monstrengos ficavam possessos toda vez que viam nossa filha levando água e ração para ela.
Contratamos até um adestrador profissional para dar um jeito na situação, mas não houve jeito. Se a vira-lata ficasse em casa, os dois iriam machucá-la seriamente.
O passo seguinte foi doloroso: explicar a uma menina de cinco anos por que ela não pode ficar com a cachorrinha que aprendeu a adorar.
Foi um curso-relâmpago de escolha de prioridades, objetivismo e racionalismo: às vezes, as únicas opções são a ruim e a menos ruim.
Optamos pela menos ruim: doar a cachorrinha para alguém que poderia cuidar e garantir a segurança dela melhor que nós.
Foi duro. Levou dias de papo e explicações sobre o significado de “cuidar”.
Será que uma menina tão nova consegue entender que, às vezes, você precisa perder alguma coisa para fazer o que é melhor para ela? A ver.
Alguns momentos reais são tão engraçados que parecem ficção.
Por exemplo: que roteirista teria a capacidade de inventar a mulher gaguejando o “sanduíche-íche” ou criar a famosa cena de Fernando Vanucci gritando: “Aahhh… Itália!”?
Há alguns dias, surgiu um desses momentos mágicos em que a realidade supera a ficção: “Os Dez Mandamentos do Camarote”.
Da primeira vez que assisti ao vídeo, achei que era ficção. E das boas.
Era bom demais para ser verdade: um ator extraordinário, capaz de dar vida a um personagem dos mais caricatos; um texto genial e de “timing” cômico perfeito, e figurantes preciosos que ajudam a dar um toque surrealista à história.
Cada vez que você revê o vídeo, encontra um novo detalhe marcante.
No trecho em que Alexander de Almeida (que nome bacana, não?) explica por que vai à balada com seguranças, ele diz: “Até pra mim ter mais cuidado com a minha vida e com meus bens.” (eu havia entendido “com meus dentes”, o que seria ainda melhor).
Mas o grande momento é a cara de moleque travesso de Alexander ao comentar sua fogosa aventura sexual dentro do banheiro do clube megavip: “Eu já transei com mulher na balada!”
Juro que não entendo como um vídeo desses pode ter causado tantas críticas. Em outros países, Alexander seria saudado como um novo gênio da comédia. Mas aqui, a inveja triunfa.
O único momento de ficção que se aproxima do opus de Alexander é esse quadro clássico do “Saturday Night Live” com os Roxbury Boys – Will Ferrell e Chris Kattan – recebendo a ajuda de Jim Carrey. Até o aparecimento de Alexander, era meu quadro cômico favorito envolvendo uma pista de dança. Aproveite…
Dê uma olhada no anúncio do São Paulo Boat Show, realizado em outubro:
Agora veja o anúncio da tradicional feira de barcos de Annapolis, nos Estados Unidos, realizada uma semana antes:
Pena que não encontrei, na Internet, a imagem do outdoor na Marginal Tietê que anunciava o São Paulo Boat Show. Além do gigantesco iate, que mais parece uma nave espacial, havia a foto de uma modelo de vestido de lamê dourado e taça de champanhe na mão, fazendo biquinho para a câmera.
As imagens usadas para vender as feiras de São Paulo e Annapolis não poderiam ser mais diferentes.
Aqui, o evento é vendido como uma oportunidade de experimentar “o luxo e sofisticação do mar”.
Em Annapolis, há uma foto aérea de uma baía, lotada de barcos de todos os tipos e tamanhos. O anúncio parece dizer: “Venha, que há um barco aqui para você”.
O evento de São Paulo é exclusivo. O de Annapolis, inclusivo.
Um parece considerar o mar coisa para poucos privilegiados; o outro parece convidar todo mundo a ter seu próprio barco.
No Brasil, barco é considerado coisa de rico. Os preços de barcos, de acessórios, de marinas, de qualquer coisa relacionada ao mar, são absurdos.
Um barco usado, aqui, custa pelo menos quatro vezes mais que um modelo semelhante no exterior.
E isso num país com oito mil quilômetros de costa contínua (uma das maiores do mundo) e com um litoral facilmente navegável.
Em outros países, no entanto, barcos são alternativas baratas para moradia e transporte.
Temos um conhecido que mora em um veleiro de 32 pés na Califórnia. Ele comprou o barco por menos de 30 mil dólares e paga 250 dólares por mês para deixá-lo numa marina linda, com segurança, vestiários limpíssimos e confortáveis e Internet de alta velocidade. Ele trabalha de terno e chega ao emprego em dez minutos, a pé. No fim de semana e nas férias, viaja com o barco. Não quer outra vida.
Aqui, em contrapartida, quem quiser morar num barco vai ter de pagar os tubos numa marina ou deixar o barco à mercê de assaltos em alguma praia.
Converse com qualquer velejador brasileiro e ele contará casos escabrosos de assaltos e violência. Temos conhecidos que foram deixados amarrados dentro do veleiro, depois de ameaçados com facas e pistolas.
Enquanto isso, nossas feiras de barcos vendem a ideia de que barcos são hotéis flutuantes, onde você poderá beber champanhe com uma gata vestida de lamê dourado. Luxo e sofisticação, e não aventura e contato com a natureza. Tá tudo errado.
Quando você acha que a música pop não tem mais nada de novo a oferecer, vem o Daft Punk e faz algo novo e inesperado.
“Random Access Memories”, o último disco do duo francês – e apenas seu quarto lançamento em 20 anos – é um dos melhores discos de 2013. E a faixa “Giorgio by Moroder” é o destaque. Há muito tempo não se ouvia nada tão genial no mundo pop.
A canção é uma homenagem ao italiano Giorgio Moroder, um dos produtores e compositores mais importantes da música eletrônica dançante.
Mas a forma como o Daft Punk homenageia Moroder é inusitada: usando o som de uma entrevista com o artista, o duo fez uma espécie de colagem pop-jornalística, quase um minidocumentário musical que cita várias fases da carreira de Moroder e ilustra suas declarações com música.
Quando o italiano fala do início da carreira, tocando em discotecas na Alemanha, ouve-se, ao fundo, sons que remetem ao tipo de música ouvido em discotecas naquela época.
Moroder depois conta como teve a ideia de usar o sintetizador Moog em suas músicas. “Eu sabia que precisava de um click, então coloquei um click”. O “click” a que ele se refere é o som produzido por um metrônomo, usado para que músicos possam manter o ritmo.
Assim que Moroder termina a frase, o Daft Punk coloca, sob a voz do produtor, o som de um click. O efeito é minimalista e fantasmagórico. O silêncio súbito choca o ouvinte e o faz prestar ainda mais atenção às palavras de Moroder.
Mais que uma canção pop, “Giorgio by Moroder” é um experimento sônico corajoso. São nove minutos que desafiam as convenções da música pop comercial. A faixa é longa, cheia de mudanças de tempo e de harmonias, com toques de discoteca, ambient, synthpop old school e até jazz. Coisa de gênios.
A última frase de Moroder resume tudo:
“Uma vez que você liberte sua mente do conceito de harmonia e música ‘corretos’, você pode fazer o que quiser. Ninguém me disse o que fazer, e não havia concepções prévias sobre o que eu deveria fazer.”